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MÚSICA
Banda traz nos genes a complexa vanguarda paulistana
O veneno e o antídoto de DonaZica
Jorge Araujo/Folha Imagem
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Os integrantes da banda DonaZica |
MARCOS DÁVILA
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Em 1998, num show do compositor Itamar Assumpção (1949-2003) no teatro Crowne Plaza, em
São Paulo, duas jovens cantoras que
dividiam o palco com ele chamavam a atenção principalmente pela
afinação nas complexas linhas vocais itamarianas e pelo sangue no
olhar. "Daí vem coisa", pensei, sentado logo nas primeiras fileiras.
Não deu outra: Anelis Assumpção
(filha de Itamar) e Iara Rennó (rebento de Alzira Espíndola e Carlos
Rennó) formaram, anos depois, o
trio Zigzira, junto com a compositora Andreia Dias. O trio deu origem,
em 2001, ao DonaZica.
O grupo -composto também
por Maria Portugal (percussão), Simone Julian (flauta e sax), Gustavo
Ruiz (violão) e Gustavo Souza (bateria)- lançou seu primeiro CD,
"Composição", distribuído pelo selo independente Tratore, e é uma
das melhores novidades do circuito
"underground" da MPB, ou da
"música popular contemporânea
da América Latina", como prefere a
vocalista Andreia Dias. "O nosso
trabalho é autoral e independente",
completa Iara Rennó.
Esses rótulos abrangentes revelam a dificuldade de encaixar o DonaZica em qualquer estilo musical.
Talvez por isso, ao escutar "Composição", o que primeiro salta aos ouvidos (e "mais óbvio", lembra Iara)
é a "influência genética" da chamada vanguarda paulistana. Nos anos
80, o movimento reuniu artistas como Alzira Espíndola e Itamar Assumpção, sem dúvida o maior cancioneiro dessa geração.
É deste último a herança musical
que se faz mais presente no trabalho
do grupo, seja nos arranjos vocais,
na inteligência, na ironia fina das letras, nas composições fundamentadas em complexas linhas de baixo
feitas no violão, seja na citação de
"Breu da Noite", de sua autoria, em
"O Fio da Comunicação", ou na
canção "Leve", com a poeta Alice
Ruiz, grande parceira de Itamar.
Das flores
"A nossa influência do Itamar é
empírica, metade da banda teve envolvimento direto com ele", diz Iara.
Alguns integrantes participaram do
grupo Orquídeas do Brasil, que
acompanhou o compositor na década de 90. "Sempre vai haver essa ligação com a vanguarda paulistana,
mas existe uma transformação dessa influência. A gente está dando sequência ao movimento. A gente come e transforma", diz a compositora, evocando a antropofagia do movimento Modernista, outro alimento do DonaZica, que aparece explicitamente na canção "Macunaíma",
sobre o "herói sem nenhum caráter"
de Mário de Andrade.
Das feridas
A delicadeza dos vocais femininos
tem como contraponto algumas
canções soturnas como "Até o Dia"
("Cada um com seus problemas/
seus mosquitos/Eles chupam o seu
sangue/sua carne"). "Tenho de falar
das feridas, não vou falar só das flores. Não faço isso para ficar deprimida, mas para exorcizar", defende Iara. Na canção que leva o nome da
banda, elas cantam: "Dona Zica tô
vivendo numa boa/E a senhora não
me poupa/vem logo me atazanar".
Dessa forma, a banda faz de si seu
próprio veneno e antídoto.
Há ainda a articulada "Protesto
Pessoal" ("E a criatividade é o melhor remédio/a cura pro tédio/ Insere a rima rica no seu verso"), a satírica "Jabá" e a ótima "11.09", sobre os
atentados de 11 de setembro de 2001
("Mais uma página de horror e glória/ Fazendo de vítima o império do
dólar/Novo velho deus que a humanidade adora").
Junto dessa trinca de compositoras, um time de músicos de primeira
constrói arranjos intrincados e deixa o ouvinte a perguntar: isso é maracatu, é samba, é drum'n'bass, é
rap, é o quê? Não importa, é DonaZica. E já era tempo de colher essas
orquídeas, feridas em flor, do jardim
musical de Itamar Assumpção.
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