São Paulo, segunda-feira, 08 de julho de 2002

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Futebol descalço e empoeirado está na origem do penta do Brasil

100% Várzea

FERNANDA MENA
DA REPORTAGEM LOCAL

Em futebol de campo de várzea, vale tudo. Chuteira surrada, aberta na ponta, remendada, esperando o pé crescer para uma substituição. Chinelo de dedo também entra em campo -seria melhor dizer em terra- e, se não tiver outro jeito, um par habilidoso de pés descalços ainda pode finalizar a jogada, levantar a poeira do campo e marcar um gol.
A vontade de jogar é o fator dominante para os garotos que moram no Jardim Irene, bairro que integra o distrito do Capão Redondo, um dos mais violentos da periferia de São Paulo. Foi lá, nessa mesma várzea, que o capitão da seleção brasileira, Cafu, fez seus primeiros passes. O jogador homenageou seu bairro de origem na comemoração do pentacampeonato Mundial ao erguer a taça com uma camisa onde se lia: "100% Jardim Irene".
Em uma área onde não há asfalto nem esgoto, a paixão brasileira pelo futebol pôde assegurar pelo menos alguns metros quadrados de terra batida para os jovens da região.
Três ou quatro vezes por semana, dezenas de garotos se reúnem no campo do bairro para jogar. "É o único lazer que temos aqui", explica Bruno Fernando Ribeiro, 17.
Mas a diversão ganha contornos de sonho com um futuro melhor. Bruno, que integra a escolinha do bairro, quer trilhar os passos do antigo vizinho e ilustre pentacampeão. Já fez testes para jogar no Corinthians e na Portuguesa. Não passou, mas quer tentar de novo. "O próprio Cafu tentou várias peneiras. Se ele saiu daqui, outros podem conseguir o mesmo. Na várzea, existem vários garotos que têm futebol para jogar na seleção", exagera Bruno.
Antônio Silva, 13, também se esfola na terra do campo do Jardim Irene de olho em um gramado verdinho de algum time de destaque. "Vou tentar as peneiras porque futebol dá futuro. Estudo também dá futuro, mas futebol dá mais."
Bruno acha que leva vantagem: "Aqui você aprende toda a ginga do futebol -seja batendo, seja apanhando".
João Marcos Menezes, 35, é professor do time do bairro há 15 anos. "Cheguei até a trabalhar um pouquinho com o Cafu", gaba-se. Para ele, o campo de várzea do Jardim Irene e os de tantas outras periferias do Brasil são peças fundamentais do nosso futebol pentacampeão.
"A malandragem do futebol brasileiro vem do campo de várzea, está muito associada à sobrevivência do pessoal daqui", explica. "Se o jogo de várzea acabar, será o fim do futebol brasileiro."

Memória
Para celebrar o futebol de várzea e defendê-lo como autêntico celeiro dos craques do Brasil, o Sesc Itaquera (av. Fernando do Espírito Santo Alves Mattos, 1.000) realiza, na sexta (12/ 7) e no sábado (13/7), um evento que resgata a memória desse esporte em São Paulo com exposição de fotografias e de objetos históricos, mesas-redondas e shows.
"Com o avanço das construções urbanas, o futebol de várzea corre risco de extinção. É um esporte de baixo custo, que atinge um grande número de jovens", defende Irene Marques, 52, organizadora do evento.
Se Antônio, do Jardim Irene, vai fazer parte do futuro dessa memória, não se sabe. Mas, exibindo o dedão do pé pelo buraco de sua chuteira, ele acredita que sim: "Quem está de chuteira certinha é porque não joga nada!".



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