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free way
Roe v. Wade v. Xuxa
GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha
Nesses dias tava indo pra aula e
vi o campus todo forrado de papeizinhos pendurados mostrando um cabide e o sinal de "proibido" em volta. Pensei que fosse
mais uma artimanha de marketing de alguma tinturaria, até me
dar conta de que o furo era mais
embaixo. Comemorava-se o aniversário de 25 anos de Roe v.
Wade, a decisão histórica da Suprema Corte americana que praticamente legalizou o aborto.
É verdade que, um quarto de
século depois desse avanço, a
guerra em nome dos fetos continua forte. Com os cabides dezenas de pôsteres "pro-life" continuam coexistindo por aqui.
Flashback rápido, e me lembrei
das discussões sobre o mesmo
tema que vi no Brasil.
No início do ano, duas gravidezes mobilizavam a atenção nacional. Se de um lado Xuxa e seu
"reprodutor de luxo" deliciavam
o país com uma gravidez tão infantilóide quanto os seus programas, de outro estava uma
"baixinha" de 10 anos carregando na barriga o fruto de um estupro na roça. Sensacionalismos à
parte, os dois casos são interessantes por serem emblemáticos
da mentalidade tupiniquim.
Quando soube do caso da menina, duvidei -santa ingenuidade- de que alguém se oporia
ao aborto. Trata-se de uma
criança, violentada de maneira
torpe, sem nem mesmo condições materiais (psicológicas,
nem se fale) de sustentar outra
vida. Imaginei que se, por algum
momento, iria descer dos credos
e dogmas que norteiam o debate
para pensar na saúde física e
mental de duas crianças, uma
em frangalhos e outra ainda por
nascer. Que nada.
O que se viu foi um espetáculo
revoltante, onde só faltou colocar o bebê em leilão. Um médico
abdicou do seu papel de curandeiro para virar emissário de fé e
convencer os pais da menina a
dar prosseguimento a uma gravidez tão desejada quanto a presidência do Itamar Franco. Organizações ofereceram-se para
financiar a vida do bebê, que estava por nascer desde que, obviamente, não fosse abortado.
Por que não ajudam também as
centenas de milhares de bebês
que nascem todo ano em estado
de miséria e que foram concebidos por pais indesejosos de ter
um filho? Só vale financiamento
o feto que está em perigo de ser
abortado? Que lógica é essa?
O estado de imobilidade geral
talvez se devesse ao fascínio
exercido pela gravidez da rainha
dos baixinhos. Xuxa, depois de
anunciar a Deus e ao Diabo que
queria ter um filho, finalmente
engravidou. A reação do público
foi curiosa. Os jornais deram capa para a foto de uma artista e
seu companheiro no ato um tanto exótico de comunicar uma
gravidez em cadeia nacional de
TV. A apresentadora, que parece
dever muito de sua empatia com
o público infantil a sua própria
mentalidade juvenil, discorreu
em horário nobre e em revista
sobre as preferências para o rebento. Preferia que fosse menina
porque seria mais divertido
brincar de decorar o quartinho.
O nome do nenê, concebido
depois de muito tempo "nhanhando" (ai!), parece que seria
Sasha porque -veja a profundidade- serviria para ele ou ela.
Não sei se foi só eu, mas tive a
impressão de que estava se falando de um carro ou de um iate.
Nos dois casos, coisificaram-se
vidas. Num caso, a banalização
foi ofuscada pelo glamour; noutro, obscurecida por uma realidade desconfortável demais para
ser tratada no chá das seis. O que
deveria estar sendo discutido ficou no ar, sem cabide pra segurar. "O mais", como dizia Drummond, "é barro, sem esperança
de escultura".
Gustavo Ioschpe, 21, é escritor e estuda administração na Wharton School e ciência política na University of Pennsylvania, EUA,
e-mail:
fala_bagual@geocities.com
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