São Paulo, segunda, 9 de março de 1998

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free way
Roe v. Wade v. Xuxa

GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha

Nesses dias tava indo pra aula e vi o campus todo forrado de papeizinhos pendurados mostrando um cabide e o sinal de "proibido" em volta. Pensei que fosse mais uma artimanha de marketing de alguma tinturaria, até me dar conta de que o furo era mais embaixo. Comemorava-se o aniversário de 25 anos de Roe v. Wade, a decisão histórica da Suprema Corte americana que praticamente legalizou o aborto.
É verdade que, um quarto de século depois desse avanço, a guerra em nome dos fetos continua forte. Com os cabides dezenas de pôsteres "pro-life" continuam coexistindo por aqui. Flashback rápido, e me lembrei das discussões sobre o mesmo tema que vi no Brasil.
No início do ano, duas gravidezes mobilizavam a atenção nacional. Se de um lado Xuxa e seu "reprodutor de luxo" deliciavam o país com uma gravidez tão infantilóide quanto os seus programas, de outro estava uma "baixinha" de 10 anos carregando na barriga o fruto de um estupro na roça. Sensacionalismos à parte, os dois casos são interessantes por serem emblemáticos da mentalidade tupiniquim.
Quando soube do caso da menina, duvidei -santa ingenuidade- de que alguém se oporia ao aborto. Trata-se de uma criança, violentada de maneira torpe, sem nem mesmo condições materiais (psicológicas, nem se fale) de sustentar outra vida. Imaginei que se, por algum momento, iria descer dos credos e dogmas que norteiam o debate para pensar na saúde física e mental de duas crianças, uma em frangalhos e outra ainda por nascer. Que nada.
O que se viu foi um espetáculo revoltante, onde só faltou colocar o bebê em leilão. Um médico abdicou do seu papel de curandeiro para virar emissário de fé e convencer os pais da menina a dar prosseguimento a uma gravidez tão desejada quanto a presidência do Itamar Franco. Organizações ofereceram-se para financiar a vida do bebê, que estava por nascer desde que, obviamente, não fosse abortado. Por que não ajudam também as centenas de milhares de bebês que nascem todo ano em estado de miséria e que foram concebidos por pais indesejosos de ter um filho? Só vale financiamento o feto que está em perigo de ser abortado? Que lógica é essa?
O estado de imobilidade geral talvez se devesse ao fascínio exercido pela gravidez da rainha dos baixinhos. Xuxa, depois de anunciar a Deus e ao Diabo que queria ter um filho, finalmente engravidou. A reação do público foi curiosa. Os jornais deram capa para a foto de uma artista e seu companheiro no ato um tanto exótico de comunicar uma gravidez em cadeia nacional de TV. A apresentadora, que parece dever muito de sua empatia com o público infantil a sua própria mentalidade juvenil, discorreu em horário nobre e em revista sobre as preferências para o rebento. Preferia que fosse menina porque seria mais divertido brincar de decorar o quartinho.
O nome do nenê, concebido depois de muito tempo "nhanhando" (ai!), parece que seria Sasha porque -veja a profundidade- serviria para ele ou ela. Não sei se foi só eu, mas tive a impressão de que estava se falando de um carro ou de um iate.
Nos dois casos, coisificaram-se vidas. Num caso, a banalização foi ofuscada pelo glamour; noutro, obscurecida por uma realidade desconfortável demais para ser tratada no chá das seis. O que deveria estar sendo discutido ficou no ar, sem cabide pra segurar. "O mais", como dizia Drummond, "é barro, sem esperança de escultura".


Gustavo Ioschpe, 21, é escritor e estuda administração na Wharton School e ciência política na University of Pennsylvania, EUA, e-mail: fala_bagual@geocities.com



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