São Paulo, Segunda-feira, 15 de Março de 1999
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Livro desmascara sordidez do pop


ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
especial para a Folha

Fique longe do livro "Cocaine" se você gosta de pop. O romance, escrito pelo jornalista inglês Phil Strongman, relata com um detalhismo sórdido os bastidores da indústria musical em Londres.
"Cocaine" é especialmente chocante porque não fala de artistas comerciais. Trata justamente da cena independente, de publicações (imaginava-se) respeitáveis. De músicos de quem se espera algum tipo de integridade.
Os críticos de música que aparecem no livro formam uma horda de bêbados que só largam o copo para ir ao banheiro usar cocaína. Vivem de festa em festa, de viagem em viagem, sempre às custas das gravadoras, as mesmas gravadoras cujos produtos eles deveriam analisar com independência.
"Cocaine" é narrado na primeira pessoa por Pete, um jornalista free-lance de música, sempre desesperado atrás de dinheiro, mas que mantém um nível de vida razoavelmente divertido porque bebe e se droga de graça, envolvido até o pescoço com empresários e promotores de festas.
O romance é uma espécie de "Alta Fidelidade" ao inverso. "Alta Fidelidade", você leu em "Escuta Aqui" há muito tempo, é o livro de Nick Hornby que conta a história de "nerds" que trabalham numa lojinha de discos no norte de Londres e passam os dias a decorar cada microdetalhe de seus álbuns preferidos.
Em "Alta Fidelidade", gente "normal" entrega a vida a um tipo de arte, a música pop, que imagina ser feita por pessoas especiais, inatingíveis, movidas a talento.
"Cocaine" faz o contrário. Seus protagonistas são os homens da indústria e agregados. Os jornalistas que, em troca de drogas e favores das gravadoras, escrevem as críticas que os zés-manés de "Alta Fidelidade" lêem com avidez.
Num dos melhores momentos de "Cocaine", Pete confessa que alguns de seus melhores textos tratavam de shows que ele nunca assistiu. Em outra cena, ele encontra um veterano jornalista que "já escreveu uns seis livros sobre bandas que nunca ouviu".
Se "Alta Fidelidade" é uma doce homenagem à inocência pop, "Cocaine" é o epitáfio seco dessa mesma inocência, relato acelerado de um mundo podre e superficial.
Praticamente toda a ação de "Cocaine" se passa no bairro do Soho, um emaranhado de ruas estreitas ao sul de Oxford Street, centro nervoso da cena cultural/ boêmia londrina, paraíso do consumo contemporâneo: lojas de discos que parecem saídas de um sonho, restaurantes fantásticos, clubes onde novos ritmos são lançados e acontece de tudo.
O livro é dedicado a "todo mundo que já viu o Sol nascer em Wardour Street", uma das ruas mais conhecidas do Soho, e exige alguma familiaridade com a cena e a geografia de Londres, tamanha a quantidade de nomes "das internas" que são despejados sem maiores explicações.
À medida que o livro se aproxima do fim, Pete embarca num ambicioso projeto pessoal: escrever uma reportagem investigativa para mostrar que os Scallies, uma banda fictícia, maior sucesso da música independente londrina em "Cocaine", só chegou ao topo da parada porque gastou uma fortuna distribuindo drogas para críticos e editores das principais publicações de música.
Numa festa ou num show, em breves lampejos de consciência, Pete consegue prestar atenção à música. É então que se lembra, emocionado, de que foi por seu amor a ela, a música, que entrou nesse mundo, e que é basicamente por causa dela que continua valendo a pena viver.
Pela especificidade do tema, é muito difícil que "Cocaine" seja lançado no Brasil. Comece a frequentar aquele curso de inglês na esquina da sua casa, compre o livro na Internet. Respire fundo, e dê adeus às ilusões.

CD Player

"Haze", Electronic
Compacto do álbum "Twisted Tenderness", do Electronic, formado por Bernard Sumner (New Order) e Johnny Marr (ex-Smiths). Marr vive fase de guitarras pesadas, como na época de "How Soon is Now", dos Smiths. Sensacional.
"Kingsize", Boo Radleys
Disco muito irregular, com alguns momentos brilhantes, destes britânicos que estão há anos na estrada, mas nunca atingiram sucesso. Destaque para a faixa "She's Everywhere", demolidora de corações.
"By Your Side", Black Crowes
Só existem três lugares no mundo onde o espírito hippie ainda não morreu: a Índia, o Brasil e os discos do Black Crowes. É dose para mamute escutar, a esta altura do milênio, um som desses, tipo metal viajandão.


Álvaro Pereira Júnior, 35, é chefe de Redação do "Fantástico" em São Paulo

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