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Livro desmascara sordidez do pop
ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
especial para a Folha
Fique longe do livro "Cocaine"
se você gosta de pop. O romance,
escrito pelo jornalista inglês Phil
Strongman, relata com um detalhismo sórdido os bastidores da
indústria musical em Londres.
"Cocaine" é especialmente chocante porque não fala de artistas
comerciais. Trata justamente da
cena independente, de publicações (imaginava-se) respeitáveis.
De músicos de quem se espera algum tipo de integridade.
Os críticos de música que aparecem no livro formam uma horda de bêbados que só largam o
copo para ir ao banheiro usar cocaína. Vivem de festa em festa, de
viagem em viagem, sempre às
custas das gravadoras, as mesmas
gravadoras cujos produtos eles
deveriam analisar com independência.
"Cocaine" é narrado na primeira pessoa por Pete, um jornalista
free-lance de música, sempre desesperado atrás de dinheiro, mas
que mantém um nível de vida razoavelmente divertido porque
bebe e se droga de graça, envolvido até o pescoço com empresários e promotores de festas.
O romance é uma espécie de
"Alta Fidelidade" ao inverso. "Alta Fidelidade", você leu em "Escuta Aqui" há muito tempo, é o livro de Nick Hornby que conta a
história de "nerds" que trabalham numa lojinha de discos no
norte de Londres e passam os
dias a decorar cada microdetalhe
de seus álbuns preferidos.
Em "Alta Fidelidade", gente
"normal" entrega a vida a um tipo de arte, a música pop, que
imagina ser feita por pessoas especiais, inatingíveis, movidas a
talento.
"Cocaine" faz o contrário. Seus
protagonistas são os homens da
indústria e agregados. Os jornalistas que, em troca de drogas e
favores das gravadoras, escrevem
as críticas que os zés-manés de
"Alta Fidelidade" lêem com avidez.
Num dos melhores momentos
de "Cocaine", Pete confessa que
alguns de seus melhores textos
tratavam de shows que ele nunca
assistiu. Em outra cena, ele encontra um veterano jornalista
que "já escreveu uns seis livros
sobre bandas que nunca ouviu".
Se "Alta Fidelidade" é uma doce
homenagem à inocência pop,
"Cocaine" é o epitáfio seco dessa
mesma inocência, relato acelerado de um mundo podre e superficial.
Praticamente toda a ação de
"Cocaine" se passa no bairro do
Soho, um emaranhado de ruas
estreitas ao sul de Oxford Street,
centro nervoso da cena cultural/
boêmia londrina, paraíso do consumo contemporâneo: lojas de
discos que parecem saídas de um
sonho, restaurantes fantásticos,
clubes onde novos ritmos são
lançados e acontece de tudo.
O livro é dedicado a "todo mundo que já viu o Sol nascer em
Wardour Street", uma das ruas
mais conhecidas do Soho, e exige
alguma familiaridade com a cena
e a geografia de Londres, tamanha a quantidade de nomes "das
internas" que são despejados sem
maiores explicações.
À medida que o livro se aproxima do fim, Pete embarca num
ambicioso projeto pessoal: escrever uma reportagem investigativa para mostrar que os Scallies,
uma banda fictícia, maior sucesso da música independente londrina em "Cocaine", só chegou
ao topo da parada porque gastou
uma fortuna distribuindo drogas
para críticos e editores das principais publicações de música.
Numa festa ou num show, em
breves lampejos de consciência,
Pete consegue prestar atenção à
música. É então que se lembra,
emocionado, de que foi por seu
amor a ela, a música, que entrou
nesse mundo, e que é basicamente por causa dela que continua
valendo a pena viver.
Pela especificidade do tema, é
muito difícil que "Cocaine" seja
lançado no Brasil. Comece a frequentar aquele curso de inglês na
esquina da sua casa, compre o livro na Internet. Respire fundo, e
dê adeus às ilusões.
CD Player
"Haze", Electronic
Compacto do álbum
"Twisted Tenderness", do Electronic,
formado por Bernard Sumner
(New Order) e Johnny Marr
(ex-Smiths). Marr vive fase de
guitarras pesadas, como na
época de "How Soon is Now",
dos Smiths. Sensacional.
"Kingsize", Boo Radleys
Disco muito irregular, com alguns momentos brilhantes,
destes britânicos que estão há
anos na estrada, mas nunca
atingiram sucesso. Destaque
para a faixa "She's Everywhere", demolidora de corações.
"By Your Side", Black
Crowes
Só existem três lugares no mundo onde o
espírito hippie ainda
não morreu: a Índia, o Brasil e
os discos do Black Crowes. É
dose para mamute escutar, a
esta altura do milênio, um som
desses, tipo metal viajandão.
Álvaro Pereira Júnior, 35, é chefe de Redação
do "Fantástico" em São Paulo
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