São Paulo, Segunda-feira, 17 de Maio de 1999
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A gorbachevização de FHC

GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha

Com a crise econômica e a suposta ênfase no "suposto" descontrole da CPI dos Bancos, começam a pulular por aí teses de que o governo do Kaiser estaria em processo prematuro de sarneyzação. O fenômeno, que toma seu nome emprestado do ilustre político da ex-Arena, que foi o presidente a reconduzir o país à democracia (?) e depois tornou-se senador pelo Amapá sendo maranhense (??!), descreve a perda de poder sofrida pelos governantes em final de mandato até a sua mais absoluta desmoralização. Esta pode chegar ao ponto de causar o tingimento do cabelo da vítima e até à troca de concessões de rádio e TV por um aninho a mais no poder. (Qualquer semelhança com a realidade terá sido mera coincidência.)
FHC estaria assim adentrando o rumo da decadência ainda no primeiro ano de seu segundo mandato, e, se a degradação de valores do sociólogo que virou presidente nos últimos cinco anos serve de amostra do que virá, a coisa é preocupante: não surpreenderá se FHC trocar o Renan Calheiros por um pirulito ou raspar a cabeça em troca de uma fotinho com a Maitê Proença. Mas, aos que já estão se preocupando, devo acalmá-los. FHC não se contentaria com epíteto tão mixuruca e está guiando seu governo de forma a se encaixar nos moldes de figura histórica do século. Nada de Sarney: entramos na gorbachevização.
Ninguém é vítima de percepções de diferenças tão extremadas quanto Mikhail Gorbachev. Banqueiros e políticos do Ocidente, mais um punhado de mafiosos russos, consideram-no o maior estadista russo do pós-guerra.
Para os russos, Gorbachev é um patife. Aqui, Gorbachev ganha loas, afagos e até o título de homem da década de 80. Na Rússia, não consegue nem passar um general com cara de retardado nas eleições presidenciais. Mas por que a discrepância?
Porque Gorbachev pilotou a transição da Rússia de uma economia estatal para o regime de mercado, em que caiu de boca. O processo desencadeado por Gorbachev acabou com monopólios estatais, abriu a Rússia para os mercados externos, permitiu a entrada de companhias estrangeiras e aboliu o controle governamental de preços, entre outras coisas.
Resumindo, foi-se o socialismo e chegou o capitalismo. A meia dúzia de capitalistas-mafiosos que se adonaram da Rússia adoraram a mudança, e principalmente o Ocidente ficou feliz com a transformação do "Império do Mal" em parceiro comercial. Os russos, contudo, se ferraram: a transição foi tão irresponsável e corrupta que concentrou o que era antes do Estado nas mãos de meia dúzia de gângsteres; a rede de bem-estar social foi desmantelada, mas a riqueza capitalista, que deveria chegar para substituí-la, não veio. O rublo quebrou, o país declarou a moratória, e a antiga superpotência está hoje limitada a frangalhos. Mas, no Ocidente, Gorbachev é rei, porque abriu as portas da União Soviética para investidores estrangeiros, cortou o arsenal nuclear e instituiu a democracia. Palmas.
FHC vai pelo mesmo caminho. Em recente passagem por aqui, foi aplaudido por banqueiros e era todo sorrisos. O Brasil, afinal, também está implantando a cartilha do que é correto: privatizações, fim do protecionismo, orçamento equilibrado (isto é, diminuição de gastos sociais), inflação baixa, juros altos, dólar flutuante etc. Sob a batuta de FHC, o país deixou de ser o Juquinha ranhento da classe e passou a ser o CDF puxa-saco da professora. Enquanto os ocidentais festejam, os brasileiros estão numa recessão jamais vista, com desemprego recorde e déficit social aumentando.
Pra Gorbachevizar total, só falta a FHC sofrer tentativa de golpe, ser resgatado pelo político "liberal" e dele virar vítima, até ter de ceder o poder. Na Rússia, foi Ieltsin. Aqui, seria ACM. Aiiiii. Volta, Sarney.


Gustavo Ioschpe, 22, é escritor e estuda administração na Wharton School e ciência política na University of Pennsylvania, EUA, e-mail: desembucha@cyberdude.com


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