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free way
Da hipocrisia ou pizza de graça
GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha
Onde quer que se ande por
aqui, encontram-se oportunidades para ajudar os refugiados de
Kosovo. Com suas caras enrugadas e histórias de terror pra contar, os fugitivos da província iugoslava aparecem todos os dias
nas capas dos maiores jornais e
são insistentemente retratados
pelos programas de televisão locais. À medida que a população
daqui vai tomando conhecimento do infortúnio dos kosovares,
surge uma das mais características manifestações americanas,
que é a doação de dinheiro, claro,
porque tempo ninguém tem, e
quem tem não o vai gastar misturando-se com os sujismundos do
outro lado do mundo. E aí dê-lhe
campanha pedindo doação, informando conta bancária, fornecendo número de telefones de
"helplines" e o escambau.
Ao mesmo tempo, porém, pesquisas de opinião mostram que
não só há apoio popular para a
ofensiva americana na Iugoslávia
como a maioria da população
apóia mesmo o uso de tropas terrestres, o que certamente aumentaria a carnificina até níveis ainda
maiores. Vendo-se esse paradoxo
aparentemente insolúvel, a vontade de ajudar combinada com o
apoio ao que está causando a piora da situação, pode-se pensar
que os americanos enlouqueceram, que as pesquisas estão erradas ou que a democracia faliu,
pois, em vez de mandar ajuda, o
americano poderia pressionar o
seu governo para que sustasse a
ofensiva.
Nada disso. As ações são completamente plausíveis e até complementares, encaixam-se num
paradigma que é o de ajudar não
aos outros, mas a si mesmo. A
mola que move a pretensa generosidade local não é o desejo de
aliviar o sofrimento kosovar, mas
sim a consciência de culpa dos locais. Culpa por ser o mais rico, ter
mais oportunidades. Imbuídos
da ética protestante que glorifica
o ganho e remedia a angústia do
sucesso por meio da filantropia, o
altruísmo local não está querendo fazer o bem, mas sim sentir-se
bem e ser bem visto por uma sociedade em que essa é a norma. É
apenas uma pequena manifestação de uma cultura "fake" como
um todo, em que a busca pelo sucesso individual é onipotente e o
egoísmo é norma. Assim é que o
americano sempre vai elogiar a
sua roupa, ou o seu cabelo, ou a
sua aparência nos primeiros cinco minutos de conversa, mesmo
que ache tudo horrível. Estes
tempos saí com uma mulher que
dizia "That's so funny!" ("Isso é
tão engraçado !") depois das minhas piadas, mas não ria. Canso-me de receber convites pra eventos benemerentes aqui no campus, que sempre começam com
um "free pizza!" (pizza de graça),
pra depois convidar o cara pra
doar sangue ou ensinar uma
criança deficiente. Os organizadores, sábios, entendem que a
ajuda não vende, mas a pizza de
graça, sim.
Ontem mesmo estava saindo de
uma festa na qual tinha tomado
umas cubas a mais, e, ao saber
que eu ia dirigir pra casa, um dos
donos da casa se jogou na frente
da porta e não me deixava sair.
Estava preocupado com que eu tivesse um acidente. Fiquei até
meio surpreso, pois nunca havia
visto o sujeito na minha vida e
pensei que se tratasse de um
exemplar raro de Altruismus
gringus. Depois de alguns minutos de discussão e tentativas de
sair pela janela, o sujeito insistindo que eu não estava em condições de dirigir e eu já começando
a considerar a técnica do joelhaço, o gurizão finalmente capitulou: que por favor eu não fosse,
que, se eu me envolvesse em acidente, ele poderia ser processado,
nunca mais ia poder dar festas
etc.
Assim é que nas próximas semanas vou ficar esperando não
só que o país mantenha o apoio à
ofensiva militar, mas que torça
por mais tragédias e refugiados
para que se possa ajudar ainda
mais gente. Com dinheiro, à distância e desde que eles continuem a ir pra Guantánamo, não
inventando de vir pra cá sujar o
Central Park.
Gustavo Ioschpe, 22, é escritor e estuda administração na Wharton School e ciência política
na University of Pennsylvania, EUA, e-mail:
desembucha@cyberdude.com
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