São Paulo, Segunda-feira, 19 de Abril de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

free way
Da hipocrisia ou pizza de graça

GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha

Onde quer que se ande por aqui, encontram-se oportunidades para ajudar os refugiados de Kosovo. Com suas caras enrugadas e histórias de terror pra contar, os fugitivos da província iugoslava aparecem todos os dias nas capas dos maiores jornais e são insistentemente retratados pelos programas de televisão locais. À medida que a população daqui vai tomando conhecimento do infortúnio dos kosovares, surge uma das mais características manifestações americanas, que é a doação de dinheiro, claro, porque tempo ninguém tem, e quem tem não o vai gastar misturando-se com os sujismundos do outro lado do mundo. E aí dê-lhe campanha pedindo doação, informando conta bancária, fornecendo número de telefones de "helplines" e o escambau.
Ao mesmo tempo, porém, pesquisas de opinião mostram que não só há apoio popular para a ofensiva americana na Iugoslávia como a maioria da população apóia mesmo o uso de tropas terrestres, o que certamente aumentaria a carnificina até níveis ainda maiores. Vendo-se esse paradoxo aparentemente insolúvel, a vontade de ajudar combinada com o apoio ao que está causando a piora da situação, pode-se pensar que os americanos enlouqueceram, que as pesquisas estão erradas ou que a democracia faliu, pois, em vez de mandar ajuda, o americano poderia pressionar o seu governo para que sustasse a ofensiva.
Nada disso. As ações são completamente plausíveis e até complementares, encaixam-se num paradigma que é o de ajudar não aos outros, mas a si mesmo. A mola que move a pretensa generosidade local não é o desejo de aliviar o sofrimento kosovar, mas sim a consciência de culpa dos locais. Culpa por ser o mais rico, ter mais oportunidades. Imbuídos da ética protestante que glorifica o ganho e remedia a angústia do sucesso por meio da filantropia, o altruísmo local não está querendo fazer o bem, mas sim sentir-se bem e ser bem visto por uma sociedade em que essa é a norma. É apenas uma pequena manifestação de uma cultura "fake" como um todo, em que a busca pelo sucesso individual é onipotente e o egoísmo é norma. Assim é que o americano sempre vai elogiar a sua roupa, ou o seu cabelo, ou a sua aparência nos primeiros cinco minutos de conversa, mesmo que ache tudo horrível. Estes tempos saí com uma mulher que dizia "That's so funny!" ("Isso é tão engraçado !") depois das minhas piadas, mas não ria. Canso-me de receber convites pra eventos benemerentes aqui no campus, que sempre começam com um "free pizza!" (pizza de graça), pra depois convidar o cara pra doar sangue ou ensinar uma criança deficiente. Os organizadores, sábios, entendem que a ajuda não vende, mas a pizza de graça, sim.
Ontem mesmo estava saindo de uma festa na qual tinha tomado umas cubas a mais, e, ao saber que eu ia dirigir pra casa, um dos donos da casa se jogou na frente da porta e não me deixava sair. Estava preocupado com que eu tivesse um acidente. Fiquei até meio surpreso, pois nunca havia visto o sujeito na minha vida e pensei que se tratasse de um exemplar raro de Altruismus gringus. Depois de alguns minutos de discussão e tentativas de sair pela janela, o sujeito insistindo que eu não estava em condições de dirigir e eu já começando a considerar a técnica do joelhaço, o gurizão finalmente capitulou: que por favor eu não fosse, que, se eu me envolvesse em acidente, ele poderia ser processado, nunca mais ia poder dar festas etc.
Assim é que nas próximas semanas vou ficar esperando não só que o país mantenha o apoio à ofensiva militar, mas que torça por mais tragédias e refugiados para que se possa ajudar ainda mais gente. Com dinheiro, à distância e desde que eles continuem a ir pra Guantánamo, não inventando de vir pra cá sujar o Central Park.


Gustavo Ioschpe, 22, é escritor e estuda administração na Wharton School e ciência política na University of Pennsylvania, EUA, e-mail: desembucha@cyberdude.com


Texto Anterior: Programa
Próximo Texto: Discoteca de músico: Seis famosos abrem seu acervo
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.