São Paulo, segunda-feira, 20 de março de 2000


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A VOZ DA CADEIA
509-E leva elite do rap ao Carandiru
João Wainer/ Folha Imagem
Os rappers detentos Afro -X (à esq.) e Dexter gravam em estúdio em Santana



JOÃO WAINER
repórter fotográfico

O nome do grupo está escrito sobre a porta da cela que os rappers Dexter e Afro X (ambos de 26 anos) dividem desde o começo do ano: 509-E. E não foram eles que escreveram.
A numeração, que acabou virando nome do duo rapper, é a identificação oficial do xadrez, que fica no quinto andar do pavilhão 7 da Casa de Detenção, o Carandiru, em São Paulo, o maior presídio da América Latina.
Na semana passada, os dois realizaram o que parecia ser um sonho: gravar um CD produzido pela elite do rap nacional. Simplesmente Mano Brown e Edi Rock (do Racionais MCs), MV Bill e DJ Hum (que faz dupla com Thaíde) produzem o disco, que ainda não tem nome definido, mas estará nas lojas no final de abril.
MV Bill, o único carioca entre os produtores, endossa: "As músicas que eu ouvi são muito boas. Eles têm embasamento para falar do assunto cadeia. O fato de ser preto e ter pouca escolaridade já dificulta bem as coisas. Imagine eles estando presos. Acho que vai ser mesmo um disco muito bom".
A história do 509-E tem início no morro Calux, em São Bernardo do Campo, quando Afro X e Dexter ainda eram crianças e se divertiam juntos descalços nas ruas de terra da favela.
Em 1990, cada um montou seu grupo de rap. O de Dexter era o Snake Boys. O de Afro X era o Suburbanos. Foi também nessa época que eles começaram a se envolver com o crime. "O que nos levou ao crime foi o sonho de consumo que a gente aprende na TV. Foi o sistema capitalista que te obriga a ser bem-sucedido. E também a falta de oportunidade que existe na favela", diz X.
Em 1994, Afro X foi preso por assalto a mão armada. O grupo Suburbanos, que ele mantinha com o irmão Bad, ficou sem o letrista e vocalista. Dexter, então, convidou Bad para fazer parte do grupo Tribunal Popular, que pouco tempo depois entrou em estúdio para gravar o disco "Xeque mas Não Mate". A alegria durou pouco. Em 98, Dexter também foi preso quando faltava apenas uma música para concluir o disco. O álbum só foi lançado no fim de 99.
A música passou a ser um sonho distante para os dois, que acabaram se encontrando novamente num corredor escuro do pavilhão 7 da Casa de Detenção, bem longe das ruas de terra do morro Calux.
Nesse encontro nasceu o 509-E. "Na cadeia a gente tem muito tempo para pensar. Se você fica só vegetando e andando com faca não vai a lugar nenhum. Mente vazia é casa do diabo", diz Dexter, que pretende lançar em breve um selo para ajudar a tirar do crime outros detentos que fazem música no sistema carcerário. "Tem mais de 20 grupos de rap, samba e gospel dentro do Carandiru. Tudo música boa", emenda Afro X.
O disco que o 509-E lança em abril vai inaugurar o selo Só Rap, da gravadora Atração. O trabalho de produção foi dividido entre quatro "aliados". Mano Brown, do Racionais, ficou com cinco faixas. Edi Rock produzirá três. MV Bill e DJ Hum vão se encarregar de uma faixa cada um. Além deles, o disco conta ainda com a participação do DJ Zé Gonzales, do Planet Hemp, que criou com Mano Brown as bases para as faixas produzidas pelo rapper do Racionais.
Com influências de James Brown, Jorge Benjor, Public Enemy, a dupla afirma ter atingido a maturidade nas letras. "No começo, a gente se ligava mais na sonoridade do rap. Com o tempo, conhecemos a filosofia de Malcom X, Martin Luther King e outros e passamos a expressar melhor nossas idéias nas músicas", diz Dexter.
Ambos têm certeza de que se não fosse a música eles voltariam para a vida no crime. Dizem que esse é um caminho seguro para que muitos outros detentos não voltem à marginalidade. "Um projeto voluntário que existe no Carandiru, chamado Talentos Aprisionados, arrumou essa gravadora. Além de música, esse projeto procura artistas de todas as áreas entre os detentos e os ajuda a sair do crime. Está sendo assim com a gente", afirma Afro X.
Em janeiro deste ano, o 509-E apareceu em reportagem de duas páginas na revista norte-americana "Newsweek". A matéria fala do rap produzido no sistema carcerário brasileiro.
Dexter fala com convicção: "Sair do crime não significa ser bunda-mole, significa apenas que você encontrou uma perspectiva melhor para a sua vida. Saímos do crime em grande estilo e não devemos nada para ninguém".
Quem quiser se corresponder com os rappers deve escrever para a Casa de Detenção (av. Cruzeiro do Sul, 2.630, CEP 02030-100, pavilhão 7, xadrez 509-E, prontuários 157858, para Afro X, e 164953, para Dexter).


trecho de música

Mais um dia já era, trancou a cela
Justiça cega
Mó saudades da favela
Olho na ventana, o sol nascer quadrado, terrível pesadelo, tô acordado
Desgosto pra minha mãe, eu lamento
Sou primogênito de seu casamento
Reze o Pai-Nosso para entrar
Ave-Maria pra escapar
Ajoelhou, vai ter que rezar
É a lei do cão, meu irmão, aqui na Terra
Discípulos de Lúcifer aqui te espera
Satisfiz meu ego, vaidade em excesso (...)
Trecho de "Só os Fortes", de Afro X.


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