São Paulo, segunda, 23 de fevereiro de 1998

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Quando Salvador virou Kingston


ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
especial para a Folha

Fevereiro de 1992. Em Barra de São Miguel, paraíso alagoano ao sul de Maceió, três paulistas notavam que o Carnaval brasileiro não era mais o mesmo.
O som que vinha das caixas acústicas precárias em volta da praça, e também dos poderosos alto-falantes do trio elétrico, nada tinha a ver com marchinhas de Carnaval. Também não era samba-enredo, nem se ouviam as guitarras velozes do tipo Dodô e Osmar.
O que contagiava a multidão era um som cadenciado, de marcação grave e letras cheias de imagens bonitas ("só saio daqui quando o coral negro passar") e palavras difíceis (uma música falava até em "povo malgaxe").
Um amigo que estava no Nordeste havia mais tempo deu a dica: "É música baiana, e tem gente que chama também de axé music".
Lembrei-me de outro amigo, que anos antes passou uns dias na Bahia e voltou dizendo que Salvador tinha virado Kingston, a capital jamaicana. A axé music era filha do samba-reggae.
Sucesso total em Barra de São Miguel, todo mundo cantava junto canções que eu jamais tinha escutado. Os nomes dos artistas eram novidade, pelo menos para mim: Daniela Mercury, Asa de Águia, Banda Beijo, Chiclete com Banana.
A um paulista leigo, parecia tudo uma coisa só. Araketu, Olodum, axé music. Face visível do movimento de afirmação negra, da identidade amplificada com a África.
Isso era o que eu achava, mas, de volta a São Paulo, descobri que o establishment da MPB já tinha opinião fechada sobre o tema: Olodum e afins tudo bem, seria politicamente incorreto criticá-los; o mesmo valia para Daniela Mercury, considerada bacana porque cantava com Gilberto Gil.
Já o Asa de Águia, a banda Beijo do Netinho... hummm... eram bregas!
Paciência. Para mim, a melhor música do Carnaval de 1992 continuava sendo aquela do Asa de Águia que começa assim: "Não tem Lua que faça você me amar/ Não tem Lua que faça você passar por mim".
Isso aconteceu há seis anos, e a música baiana se consolida hoje como a trilha sonora oficial do Carnaval do Brasil.
Não cabe discutir aqui os esquemas sórdidos de gravadoras, as malandragens das estações de rádio, as imposições de mercado que hoje cercam um veio tão próspero quanto o da música baiana.
O fato é que ela surgiu do nada no Nordeste e, se abalou o monolito ancestral das marchinhas, se ganhou o país de modo tão avassalador, é porque algum mérito tem.
O samba stalinista dos anos 70, o tropicalismo, todos eles fizeram suas incursões carnavalescas, sem um milésimo do sucesso de Netinho ou da Banda Eva de Ivete Sangalo.
Cada dia que passa é um dia a menos que falta para a gente morrer. O Carnaval está aí, divirta-se quanto puder, tenha em mente o slogan de um gin inglês: "Se você acha que está muito cansado para sair hoje à noite, pense em como vai se sentir aos 73 anos".

Quando homenageou os "doces bárbaros", a Mangueira amargou o décimo primeiro lugar no desfile do Rio. Este ano, o enredo é Chico Buarque. Rebaixamento?


Álvaro Pereira Júnior, 34, é chefe de Redação da Rede Globo em São Paulo


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