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Quando Salvador virou Kingston
ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
especial para a Folha
Fevereiro de 1992. Em Barra de
São Miguel, paraíso alagoano ao
sul de Maceió, três paulistas notavam que o Carnaval brasileiro
não era mais o mesmo.
O som que vinha das caixas
acústicas precárias em volta da
praça, e também dos poderosos
alto-falantes do trio elétrico, nada tinha a ver com marchinhas
de Carnaval. Também não era
samba-enredo, nem se ouviam as
guitarras velozes do tipo Dodô e
Osmar.
O que contagiava a multidão
era um som cadenciado, de marcação grave e letras cheias de
imagens bonitas ("só saio daqui
quando o coral negro passar") e
palavras difíceis (uma música falava até em "povo malgaxe").
Um amigo que estava no Nordeste havia mais tempo deu a dica: "É música baiana, e tem gente
que chama também de axé music".
Lembrei-me de outro amigo,
que anos antes passou uns dias
na Bahia e voltou dizendo que
Salvador tinha virado Kingston,
a capital jamaicana. A axé music
era filha do samba-reggae.
Sucesso total em Barra de São
Miguel, todo mundo cantava
junto canções que eu jamais tinha escutado. Os nomes dos artistas eram novidade, pelo menos para mim: Daniela Mercury,
Asa de Águia, Banda Beijo, Chiclete com Banana.
A um paulista leigo, parecia tudo uma coisa só. Araketu, Olodum, axé music. Face visível do
movimento de afirmação negra,
da identidade amplificada com a
África.
Isso era o que eu achava, mas,
de volta a São Paulo, descobri
que o establishment da MPB já
tinha opinião fechada sobre o tema: Olodum e afins tudo bem,
seria politicamente incorreto criticá-los; o mesmo valia para Daniela Mercury, considerada bacana porque cantava com Gilberto Gil.
Já o Asa de Águia, a banda Beijo
do Netinho... hummm... eram
bregas!
Paciência. Para mim, a melhor
música do Carnaval de 1992 continuava sendo aquela do Asa de
Águia que começa assim: "Não
tem Lua que faça você me amar/
Não tem Lua que faça você passar
por mim".
Isso aconteceu há seis anos, e a
música baiana se consolida hoje
como a trilha sonora oficial do
Carnaval do Brasil.
Não cabe discutir aqui os esquemas sórdidos de gravadoras,
as malandragens das estações de
rádio, as imposições de mercado
que hoje cercam um veio tão
próspero quanto o da música
baiana.
O fato é que ela surgiu do nada
no Nordeste e, se abalou o monolito ancestral das marchinhas,
se ganhou o país de modo tão
avassalador, é porque algum mérito tem.
O samba stalinista dos anos 70,
o tropicalismo, todos eles fizeram suas incursões carnavalescas, sem um milésimo do sucesso
de Netinho ou da Banda Eva de
Ivete Sangalo.
Cada dia que passa é um dia a
menos que falta para a gente
morrer. O Carnaval está aí, divirta-se quanto puder, tenha em
mente o slogan de um gin inglês:
"Se você acha que está muito
cansado para sair hoje à noite,
pense em como vai se sentir aos
73 anos".
Quando homenageou os "doces bárbaros", a Mangueira
amargou o décimo primeiro lugar no desfile do Rio. Este ano, o
enredo é Chico Buarque. Rebaixamento?
Álvaro Pereira Júnior, 34, é chefe de Redação da Rede Globo em São Paulo
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