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ESTANTE
Um narrador, dois irmãos e o retrato do povo brasileiro
LUÍS AUGUSTO FISCHER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Numa de suas tiradas sintéticas e agudas, Oswald de
Andrade fala do povo brasileiro como sendo composto por habitantes naturais (os índios), imigrados,
traficados e turistas. Está no "Manifesto Antropófago",
de 1928. A piada está em dimensionar ironicamente
nossa condição: o que não é nativo, por sinal, pouco do
que havia originalmente, veio de fora. Tocado pelo chicote, como os escravos africanos, tocado pela fome, como os imigrantes pobres, ou ainda tocado pela curiosidade de ver como funciona isso aqui e talvez ganhar algum, como as elites migratórias de ontem e de hoje.
É óbvio, mas precisou alguém perceber o detalhe que
nos faz sentir o que o crítico Roberto Schwarz chamou
de "torcicolo cultural": essa sensação que sempre estamos desconfortáveis quanto à identidade. Tirando os
poucos índios, todo mundo é ou pode se sentir como
pertencente a outra parte do mundo.
Invertendo a luneta, dá pra ver que isso compõe o jeito de ser do Brasil, que de mistura em mistura deu em
nossas maravilhas e baixezas, para o bem e para o mal. E
nos conhecemos pouco. Como é que são os japoneses e
descendentes aqui aclimatados? E os africanos de variada procedência? E os italianos, alemães, poloneses e todo mundo que veio parar aqui e virou brasileiro?
Uma parte dessa história está no romance "Dois Irmãos", de Milton Hatoum. O centro do enredo: família
de libaneses imigrados, com filhos nascidos aqui. Pai,
mãe, dois filhos gêmeos e uma filha. Vivem do comércio, atividade ancestral dos povos do Oriente Médio.
Foram dar com os costados em Manaus -pensa bem:
calor, chuva, rio por toda a parte, a floresta infinita ali do
lado. E tomam uma índia como doméstica. E a índia
tem um filho, cujo pai é um dos gêmeos.
A história transcorre entre 1910, quando Halim e Zana, os pais, se conhecem, e o presente. Ao fundo do
enredo desfila a história obscura do sul da região amazônica. História que arranca do fim do ciclo da borracha, passa pela Segunda Guerra e alcança o período da
Zona Franca. Mas o que dói mesmo é a história da família e a dureza da vida do mestiço filho da índia, que narra a história para entender seu lugar nesse mundo.
E-mail: fischerl@uol.com.br
Dois Irmãos
Autor: Milton Hatoum
Editora: Cia. das Letras,
272 págs.
Quanto: R$ 24, em média
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