São Paulo, segunda-feira, 23 de outubro de 2000

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ESTANTE
Um narrador, dois irmãos e o retrato do povo brasileiro

LUÍS AUGUSTO FISCHER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Numa de suas tiradas sintéticas e agudas, Oswald de Andrade fala do povo brasileiro como sendo composto por habitantes naturais (os índios), imigrados, traficados e turistas. Está no "Manifesto Antropófago", de 1928. A piada está em dimensionar ironicamente nossa condição: o que não é nativo, por sinal, pouco do que havia originalmente, veio de fora. Tocado pelo chicote, como os escravos africanos, tocado pela fome, como os imigrantes pobres, ou ainda tocado pela curiosidade de ver como funciona isso aqui e talvez ganhar algum, como as elites migratórias de ontem e de hoje.
É óbvio, mas precisou alguém perceber o detalhe que nos faz sentir o que o crítico Roberto Schwarz chamou de "torcicolo cultural": essa sensação que sempre estamos desconfortáveis quanto à identidade. Tirando os poucos índios, todo mundo é ou pode se sentir como pertencente a outra parte do mundo.
Invertendo a luneta, dá pra ver que isso compõe o jeito de ser do Brasil, que de mistura em mistura deu em nossas maravilhas e baixezas, para o bem e para o mal. E nos conhecemos pouco. Como é que são os japoneses e descendentes aqui aclimatados? E os africanos de variada procedência? E os italianos, alemães, poloneses e todo mundo que veio parar aqui e virou brasileiro?
Uma parte dessa história está no romance "Dois Irmãos", de Milton Hatoum. O centro do enredo: família de libaneses imigrados, com filhos nascidos aqui. Pai, mãe, dois filhos gêmeos e uma filha. Vivem do comércio, atividade ancestral dos povos do Oriente Médio. Foram dar com os costados em Manaus -pensa bem: calor, chuva, rio por toda a parte, a floresta infinita ali do lado. E tomam uma índia como doméstica. E a índia tem um filho, cujo pai é um dos gêmeos.
A história transcorre entre 1910, quando Halim e Zana, os pais, se conhecem, e o presente. Ao fundo do enredo desfila a história obscura do sul da região amazônica. História que arranca do fim do ciclo da borracha, passa pela Segunda Guerra e alcança o período da Zona Franca. Mas o que dói mesmo é a história da família e a dureza da vida do mestiço filho da índia, que narra a história para entender seu lugar nesse mundo.

E-mail: fischerl@uol.com.br

Dois Irmãos

Autor: Milton Hatoum
Editora: Cia. das Letras, 272 págs.
Quanto: R$ 24, em média



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