São Paulo, Segunda-feira, 24 de Maio de 1999
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O talento da brasileira que soa como Liz Phair e a bela volta do Capital

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
especial para a Folha

Uma mulher toca guitarra com mão pesada na noite de domingo para segunda-feira. O som vem da TV, e a primeira impressão é que se trata de um clipe novo da americana Liz Phair, a mais roqueira dessas meninas nervosas que se apresentam sozinhas no palco.
Mas Liz Phair não fala português e, mesmo que falasse, dificilmente escolheria para seu repertório aquela canção melosa da dupla Evaldo Gouveia e Jair Amorim (autores de boleros para Nelson Gonçalves e precursores do samba-enredo brega, com "O Mundo Melhor de Pixinguinha", tema da Portela em 1974).
Conclusão óbvia: é uma brasileira que empunha aquela guitarra na TV. Ela canta como uma ninfa. Tem voz poderosa, grave, de timbre noturno.
Quem será? É preciso esperar, porque os caracteres na tela só informam os títulos das músicas, não o nome da cantora.
O repertório dela... bem, é de lascar. Depois da pérola da dupla Gouveia-Amorim, a cantora anuncia uma composição própria que entoa acompanhada de um pandeiro.
As falas entre as músicas também não avançam um milímetro além do papo riponga que tanto sucesso faz entre nossos astros da MPB. Cabecismo raso, mensagens meio místicas... o de sempre.
Mas nem repertório fraco e frases cretinas tiram o brilho de uma artista tão obviamente talentosa.
Com a provável exceção de Andreas Kisser, do Sepultura, nenhum homem toca guitarra com tanta violência no Brasil. E é bom lembrar: nossa cantora misteriosa não apresentava, na TV, nenhum cover do demolidor Rob Zombie nem tinha por trás uma banda com outras três guitarras e dois bateristas.
Era só ela, sozinha no palco, desperdiçando voz e talento musical num desfile de canções sem importância.
Acabou o show. O apresentador diz finalmente o nome da moça: Ana Carolina. Ela explica que é de Juiz de Fora (MG) e acha legal ter conseguido fazer algum sucesso sem sair de lá.
Provavelmente Ana Carolina nunca ouviu falar em Liz Phair. Deve perder tempo escutando "clássicos" da MPB (a cultura pop brasileira é a mais respeitosa do universo; limita-se a repetir o passado e bajular totens estabelecidos), além de sofrer a influência desse exército de desfibrados sem sexo que faz a tal "nova Música Popular Brasileira" (Lenine, Zeca Baleiro, Paulinho Moska etc.).
Se Ana Carolina ouvisse os dois primeiros álbuns da inglesa PJ Harvey ("Rid of Me" e "Dry"), além de "Exile in Guyville", de Liz Phair, talvez entendesse que existe vida lá fora, e é muito mais interessante do que ela pode imaginar.
O mesmo show que teve Ana Carolina trouxe mais uma boa surpresa: o Capital Inicial de volta, soando melhor e mais jovem do que nunca.
Dinho Ouro Preto faz agora um tipo bacana, híbrido de Jim Morrison e Jon Spencer.
O público adolescente vibrou com duas ótimas canções do disco novo, "1999" e "O Mundo", atingindo um estágio raro no rock brasileiro: som alegre sem ser engraçadinho; simples sem ser mal tocado.
Longa vida ao Capital.


Álvaro Pereira Júnior, 36, é chefe de Redação do "Fantástico" em São Paulo.


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