São Paulo, Segunda-feira, 24 de Maio de 1999
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Free way
Apesar de vocês


GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha

É comum ouvir, entre jovens, lamúrias sobre a maldade de seus pais. Pai que não deixa passar o fim-de-semana com o namorado, não deixa sair, força a estudar, corta a mesada, bate nos filhos etc. É verdade que há pais que infernizam a vida dos filhos, mas também é verdade que a maioria dos filhos não entende os pais.
Parte do processo de amadurecimento de uma pessoa envolve entender seus pais como pessoas e distanciar-se da imagem de super-herói formada na infância. Pais são pessoas normais e têm as suas neuroses, os seus problemas e angústias, que limitam sua capacidade de ser o que o filho deseja que eles sejam. Que é uma infelicidade ter pais que não o amam o suficiente -porque, no fim, tudo se resume à falta de amor- ninguém duvida, mas mais triste ainda é deixar essa frustração virar causa de desamparo e letargia. Talvez seja um resquício de um século freudiano a idéia de que os filhos são tão determinados pelos pais e que, contra a experiência de pais abusivos, só resta chorar e esperar por uma próxima geração.
Exemplos provando o contrário não faltam. Falemos de três rapazes. O primeiro era tão humilhado e massacrado em público por seu pai que fugiu de casa com um companheiro. O pai ordenou a captura de ambos e fez questão de que o filho presenciasse o decepamento do companheiro em praça pública. O segundo tinha uma mãe que reclamava publicamente de seu casamento e da infelicidade que este trouxera e um pai que o espancava quase diariamente para que o garoto tocasse seu piano e que frequentemente voltava pra casa bêbado, acordava o filho infante e o forçava a tocar até o raiar do dia. O terceiro nasceu num dia de Natal, sem pai -já morto. Sua mãe se casou de novo, e o padrasto o mandou à avó para que o criasse, e assim o garoto passou a infância e a juventude inteira vendo na casa vizinha sua mãe, que não se importava com ele, repartir com um estranho o leito que fora de seu pai.
O primeiro é Frederico, o Grande, um dos mais virtuosos monarcas que a Europa já viu; o segundo é Beethoven, e o terceiro é Newton. São apenas três exemplos de uma lista extensa de gente que, apesar das mazelas a que a vida a submeteu, decidiu gastar seu tempo perseguindo o avanço, em vez de remoer e chorar o passado.
É coisa que qualquer um pode fazer. Os filhos não são propriedade dos pais e só lhes devem aquilo que deles é tipicamente esperado -obediência, respeito etc.- à medida que os pais também dão aquilo que é esperado deles -muito amor, compreensão e segurança. Quando os pais são umas bestas, não se pode esperar dos filhos que os tratem como seres humanos. Seria perda de tempo.
Todo filho que passa anos a fio sendo pisoteado por seus pais sem reagir está dando, com seu silêncio e resignação, autorização implícita para que os carrascos continuem a tratá-lo como vítima. Chega-se a um ponto no desenvolvimento de uma pessoa, quando as sinapses já estão funcionando direitinho, em que se torna impossível não saber que há algo de errado com seus pais e que algo precisa mudar.
E quem tem o poder para mudar são os filhos, pois nós é que somos a continuação da espécie de nossos pais e, portanto, receptores de amor incondicional -e não o contrário. Quando é impossível conversar com seus pais, rebata a violência com violência: greves de silêncio, falta de presente nos aniversários e demais manifestações de raiva. Se nada funcionar, talvez seja a hora de pensar em ir embora. Qualquer pai sadio vai fazer o que for possível pra evitar que seu filho saia de casa, que se arrisque dessa forma. E, caso seus pais façam parte da minoria que não se importa, aí, sim, é que está na hora de fugir. Pra bem longe.


Gustavo Ioschpe, 22, é escritor e estuda administração na Wharton School e ciência política na University of Pennsylvania, EUA, e-mail: desembucha@cyberdude.com


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