São Paulo, segunda-feira, 26 de janeiro de 2004

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PROTAGONISMO

Jovens negros ajudam a valorizar particularidades culturais

Munição contra o preconceito

ANTONIO ARRUDA
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Elas driblaram o preconceito e assumiram o visual afro. Hoje, resolveram trabalhar a auto-estima de milhares de outras crianças.
Certa vez, ao entrar na sala de aula, em uma escola pública de Salvador, cidade onde mais de 80% da população é negra, a estudante do segundo ano do ensino médio Paula Roberta Bacelar Santos Bonfim, 19, ouviu da professora, que se deparou com seu cabelo black power: "Não veio penteada hoje?"
"Dei uma resposta à altura: "a senhora não conhece o movimento Black Power?"." Paula não sente mais vergonha nem fica vexada com o comentário alheio a respeito do cabelo crespo e armado, do nariz alargado e da cor da pele. "Às vezes, ainda sofro um pouquinho, principalmente na escola. Mas, ao mesmo tempo, há várias colegas que vêm me perguntar sobre cultura afro porque reparam no meu visual."
Paula é uma das oficineiras que trabalham na ONG Núcleo Omi Dùdú e, hoje, não só superou muitos "traumas comuns às pessoas negras, que encaram uma realidade cheia de preconceitos", como trabalha contra a discriminação: discute cultura e estética afro com milhares de crianças do ensino fundamental da rede pública de Salvador.
Como participante da Omi Dúdù, Paula esteve envolvida no ano passado com cerca de 12 mil crianças de 55 escolas da periferia da cidade. O pessoal da ONG chega às escolas munido de miçangas, búzios, palha da costa, alfinetes, panos coloridos, fitas de vídeo, folhetos e muito bom humor. Fazem trançados nos cabelos das meninas, desenhos nos cabelos dos garotos, cruzam os panos na criançada e, com muita prática, compõem uma roupa tipicamente africana, com direito a turbante. Entre uma amarração de tecido e a maquiagem, elas falam de cultura, higiene, racismo e violência.
"Aproveitamos a questão estética para discutir essas outras questões. No final, quando as crianças desfilam produzidas, dá gosto ver como a auto-estima delas melhora", conta Sâmia Jamile da Conceição Bonfim, 19. Como Paula, Sâmia não assumia o cabelo crespo. "Não me achava bonita".
Essa relação negativa das crianças e jovens com a própria imagem muitas vezes é criada ou intensificada pelos pais. José Roque Lima, 32, um dos diretores da Omi Dùdú, diz que é comum alguns pais procurarem a ONG e dizerem: "Que história é essa de fazer trança no cabelo da minha filha, quer que a chamem de neguinha?". Paula, às vezes, passa por situação semelhante. "Meu pai fala: "Você está parecendo uma louca. Tira isso! Eu vou comprar um alisante para você!" Já sobre meu irmão mais novo, que raspa e faz desenho no cabelo, meu pai diz que ele parece um marginal".
Inês Correia Lima Nascimento, 22, que também faz tranças na garotada, mas fica responsável principalmente pela maquiagem, diz que costuma falar às crianças: "Não estou aqui para trazer beleza para ninguém, mas para realçar o que vocês já têm de bonito".



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