São Paulo, Segunda-feira, 26 de Abril de 1999
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free way
Cadeia para alunos e reitores

GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha

Está sendo necessária a morte de um futuro médico para que a sociedade se sensibilize e acabe com essa barbaridade que é o trote universitário. Para quem nunca passou pelo ritual ou não conhece as figuras que povoam os campi universitários brasileiros, o acontecido pode parecer surpreendente. Para quem não desfruta de tal ignorância, o afogamento do estudante Edison só confirma impressões antigas.
Primeiro: a de que há nas universidades desse país uma cambada de bestas, oriundas de um estrato particular da sociedade, acostumada com a impunidade, com a arrogância e com o desprezo pelo mais fraco que a caracterizaram e a caracterizam.
Seria esperado que, quanto mais concorrida a faculdade e mais difícil o curso, mais civilizados seriam seus ocupantes, mas é exatamente o oposto o que acontece, graças ao sistema brasileiro, que abre as portas das universidades públicas aos filhinhos de papai e indica o caminho do fundo da piscina àqueles que nunca aprenderam a nadar, literal e metaforicamente.
Os mesmos delinquentes que se divertem pisoteando as mãos de afogados são aqueles que sufocam a primeira-dama, que só se manifestam aos coices, gritos e palavrões. E serão os mesmos, amanhã, a invocar seu diploma universitário para safar-se quando pegos em suas mutretas e a sacar de sua inviolabilidade cada vez que sua cretinice for exposta. Para eles, primeiro expulsão, depois cadeia.
A segunda impressão é que o acontecido reforça a imbecilidade completa desse ritual chamado trote. Qual é o sentido do trote? Se é para os veteranos se divertirem à custa dos mais fracos, que fiquem em casa e continuem incomodando suas empregadas. Se é para terem uma desculpa pra bater em alguém, que se matriculem numa academia de jiu-jitsu. Se é para se embebedarem, que se dirijam a uma boate.
Não venham me dizer que é necessário para que calouros e veteranos se conheçam. Primeiro, porque não sei qual é a grande necessidade dos grupos de se conhecer. Segundo, porque, se querem realmente se conhecer, que o façam sem violência, num ambiente sadio, como as pessoas civilizadas do planeta.
Aos que dizem ser o trote um "ritual de passagem" necessário para sinalizar a entrada na vida universitária vale lembrar que as universidades daqui, por exemplo, não toleram essa prática estúpida e que a grande maioria das passagens da vida não vem acompanhada de um ritual, e nem por isso são menos válidas. Esse papo não cola.
Por último, o ocorrido mostra a irresponsabilidade e a submissão dos diretores de faculdades do Brasil. Que as bestas estudantis cometam uma barbaridade dessas é de esperar; que os administradores das instituições lhes dêem guarida e legitimidade é não só motivo de espanto, mas de processo criminal. Quem autoriza esse tipo de coisa deveria ir junto para o xilindró.
Mas os reitores não fazem nada, ou porque estão cegos a ponto de não entender o estapafúrdio da situação, ou porque têm medo dos alunos. Fico com a segunda possibilidade. Pais e professores desses moleques mimados, depois de décadas de libertinagem, criaram feras, que agora não conseguem controlar. Assim, são subjugados por suas crias e por elas coagidos, achincalhados. Ficam nessa retórica idiota de fazer a vontade dos alunos, porque a universidade seria deles. Balela.
Universidade pública é da comunidade, e seus diretores são agentes da coletividade. Se os mauricinhos da vida querem mandar e desmandar, que migrem para uma universidade privada. Na coisa pública, quem manda somos nós.
Cabe a nós, ainda não bestializados, exigir que essa irresponsabilidade seja encerrada e seus artífices (alunos e dirigentes) punidos. Não só pela memória de Edison, mas principalmente pelo futuro de nossos filhos.


Gustavo Ioschpe, 22, é escritor e estuda administração na Wharton School e ciência política na University of Pennsylvania, EUA, e-mail: desembucha@cyberdude.com


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