São Paulo, segunda, 28 de abril de 1997.

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free way
Vírus x afinadores de piano

GUSTAVO IOSCHPE
especial para a Folha

Olha, acho pedante esse negócio de brasileiro que fica usando a imprensa para descrever suas magníficas atividades culturais em Nova York, mas dessa vez vou ter de usar esse cenário como pano de fundo para desenvolver a trama.
Estava indo ver um concerto da Filarmônica de Viena. Ocorre que o concerto já estava esgotado há horas (que gringo que é gringo compra tudo com um ano de antecedência), e só me restava esperar na frente do teatro na esperança de que alguém desistisse. Chego uma hora e dez minutos antes de começar o espetáculo, e já há centenas de pessoas à porta. Primeiro pensei que se tratava de uma avalanche de brasileiros que também aderiram ao jeitinho dos ingressos de última hora e já estava quase fugindo. Aí me dei conta de que estava todo mundo de terno e gravata (brasileiro só usa calça de brim com tênis e boné) e percebi que houvera um engano de minha parte. O negócio começava mesmo dali a dez minutos.
Encaminho-me à fila dos ingressos e começo a conversar com uma senhora, pedindo instruções sobre onde pegar ingressos devolvidos. Ela não entendeu muito bem esse papo de vir ao teatro sem ingresso, então me disse que tinha um ingresso sobrando, e podíamos resolver a questão. Eu disse que tudo bem, e tal, desde que fosse um preço justo (que eu sou brasileiro -portanto eshpérrto- viu, madame?). Pois a senhora olhou para a minha figura de estudante pé-rapado -jeans e camiseta, com todo orgulho- e me passou o ingresso. Custava US$ 100. Perguntei quanto ela queria, e a senhora me disse: nada. Como ela também havia ganhado de presente e não tinha mais ninguém pra dar, achou que não seria correto me vender. Eu, enrubescido, agradeci efusivamente. Era num camarote, nossos lugares, dados a ela pelo diretor da orquestra -seu amigo íntimo. O que não era de estranhar, pois, como descobri depois de alguns minutos de papo, a senhora era afinadora de pianos. (E, para ficar mais exótico: só tinha saído dos Estados Unidos para ir à Antártida).
Começa o concerto, e descubro que não é a Filarmônica de Viena coisa nenhuma (depois vejo que o jornal é que deu o endereço errado). Mas era melhor ainda. Orquestra regida por André Prévin -um dos maiores maestros do mundo- com a soprano Renée Fleming, excelente, executando obras de Mozart e Strauss. Sou um cara de sorte, penso cá com meus botões. Terminado o concerto, cinco minutos de aplauso de pé. Entra por um canto um piano de cauda, e o maestro vira pianista, acompanhando a soprano. Ela fala que se trata de um concerto beneficente para a Aids e que espera que essas coisas não sejam mais necessárias quando uma cura for descoberta (no que um violinista viadinho deixa escapar um gritinho de "yeah" bem desmunhecado). Depois, então, cantam, simbolicamente, "Somewhere over the rainbow...", a música do Mágico de Oz, sobre toda a esperança necessária e tal.
Termina finalmente esta maravilha cultural, e sou inundado por um repentino sentimento de otimismo e amor a nossa humanidade. Compartilho, inusitadamente, dessa esperança quase que imprescindível à sobrevivência nesses dias. E fico pensando que se essa nossa espécie foi capaz de criar milagres como Mozart, Strauss, uma soprano linda e maravilhosa e, principalmente, uma afinadora de pianos apaixonada pela Antártida que dá ingressos de US$ 100 para jovens desconhecidos, essa mesma humanidade não pode, de jeito maneira, ser batida por um vírus de nada. Pode ter certeza. Eu e o violinista viadinho estamos confiantes de que os "homo sapiens" vão ganhar mais essa. Quem viver, verá.


Gustavo Ioschpe, 20, é escritor e estuda administração na Wharton School of University of Pennsylvania, EUA

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