São Paulo, quinta, 10 de dezembro de 1998
 
 


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RESUMINDO

Síntese da tragédia social do sertão

FRANCISCO ACHCAR
especial para a Folha

"Vidas Secas" (1938), de Graciliano Ramos (1892-1953), é a história de uma família de retirantes, que, paradoxalmente, não chega a constituir uma história. A dura andança, sob a implacabilidade da seca, de certa forma justifica a inutilidade da comunicação entre os membros da família, como justifica o fato de os filhos não apresentarem nomes, as dificuldades linguísticas do pai, Fabiano, e a inquietação constante. Justifica também o sacrifício do papagaio, que tinha acompanhado a família e veio a transformar-se em alimento providencial.
Não bastassem tais infortúnios, Fabiano vem a ser preso pelo "soldado amarelo", símbolo do autoritarismo local. Ao contrário de Fabiano, que se mostra matuto em tudo, sua mulher, Sinhá Vitória, apresenta sinais de ter vindo de um meio social menos duro. Baleia, a cachorra, consegue sentir e reagir com inteligência superior à média dos animais. Sua "humanização" progressiva acompanha a também progressiva "animalização" dos membros da família.
Embora se revolte contra as contas do patrão, Fabiano tem de aceitá-las, para não perder o emprego. Seu reencontro com o soldado amarelo, depois, em plena caatinga, faz-lhe reconhecer sua própria superioridade. Acaba perdoando, ensinando ao soldado o caminho de volta. A temida seca enfim está chegando. As árvores se enchem de aves de arribação.
Fabiano recomeça a analisar sua vida. Quem lhe dá ânimo é Sinhá Vitória. Os retirantes deixam a casa da fazenda e retomam o caminho de sempre. No pensamento de Fabiano brilha uma certa esperança, materializada pelas promessas de chegar ao sul do país. Mas a perspectiva que vem do narrador é a da contínua andança, sem definição e sem destino certo.
A secura é a dominante da obra: secas são não só as vidas das personagens e as paisagens que atravessam, mas também a linguagem do livro. As frases são curtas, lacônicas, o vocabulário é mínimo, a própria montagem da narrativa é esquelética, feita de quadros que se reduzem a si mesmos, sem se articular no desenho mais amplo de uma história, pois esta também parece faltar àqueles magros retirantes.
"Vidas Secas" é um romance afortunado. Além das inúmeras traduções, tem conhecido aplauso não menos intenso por parte do público que por parte da crítica. Isto se deve a várias qualidades do livro. A principal é que ele sintetiza a tragédia social brasileira no sertão nordestino, com uma linguagem levada aos limites da concisão e do aprimoramento, enfim, com um estilo que consegue ser artístico, sem a menor afetação.
Quais os defeitos que Graciliano Ramos conseguiu evitar? Um deles seria reduzir o livro a uma equação política. Outro seria usar a tradicional ornamentação da natureza. A natureza em "Vidas Secas" é enxuta, áspera e limitada ao necessário. Está sempre diante de nós, mas nunca é enfática.
Outro dos males do regionalismo, que Graciliano também contornou, são as tradicionais ingerências do narrador opiniático. Graciliano pinta os quadros patéticos da família ambulante sem dar a seu livro o caráter panfletário, de escrito de protesto, tão comum no chamado "realismo socialista", em grande voga nos anos 30.


Francisco Achcar é professor de língua e literatura latina na Unicamp e autor de "Lírica e Lugar-comum" (Edusp)



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