São Paulo, terça-feira, 16 de janeiro de 2007
  Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LITERATURA

"A Igreja do Diabo': uma reflexão sobre a ética

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quem ainda não se deliciou com a ironia e o sarcasmo de Machado de Assis pode começar a fazê-lo pela leitura de seus contos. Entre os mais conhecidos está "A Igreja do Diabo", inserido na coletânea "Histórias sem Data" (1884), um dos mais atuais textos de Machado de Assis que, aliás, já foi tema de redação na Fuvest.
Trata-se de alegoria em que o Diabo decide fundar uma igreja, ou melhor, institucionalizar a sua. Faz uma espécie de retrato em negativo da Igreja de Deus. Negar será seu modo de afirmar: "Há muitos modos de afirmar, há só um de negar tudo". O Diabo anseia pela organização, pelas regras, enfim, pelo ritual da Igreja Católica.
Assim, toma emprestado o vocabulário da Igreja (prédicas, bulas, novenas). Ao Diabo seduz a idéia de ter fiéis que o adorem num templo. A ironia é patente: Machado destila seu arsenal de críticas à Igreja e a suas fórmulas de amor ao próximo.
A igreja do Diabo será a negação da igreja de Deus. Será despojada de conteúdo simbólico. O vinho e o pão, distribuídos à farta, serão elementos materiais. A concepção que o Diabo tem das coisas é materialista. Sua doutrina retirará dos homens a culpa (que funda o cristianismo) para que exerçam sua natural índole materialista. O vocabulário das finanças perpassa o discurso do Demônio (custo alto, hospedaria barata).
O Diabo, com seu discurso retórico, desenvolve uma engenhosa parábola. Transforma, com seus sofismas, os antigos vícios em virtudes. A soberba, a luxúria, a preguiça, a gula convertem-se em virtudes. Há uma desmetaforização dos símbolos da igreja.
A demonstração mais eloqüente da teoria aparece na defesa da venalidade: "A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos". E prossegue em sua lógica desprovida de moral: "Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, cousas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, cousas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo?".
Não é preciso ir muito longe para descobrir que o Diabo angariou muitos adeptos à sua doutrina. Afinal, o homem poderia continuar sendo exatamente como é e sem a culpa. A surpresa dá-se no momento em que o Demônio flagra seus fiéis desobedecerem aos seus preceitos e, às escondidas, praticarem as antigas virtudes cristãs. O texto vale uma reflexão sobre a natureza humana, atualíssimo nestes tempos em que a ética está em debate.


THAÍS NICOLETI DE CAMARGO, autora dos livros "Redação Linha a Linha" (Publifolha) e "Uso da Vírgula" (Manole), é colunista da Folha Online e do site gazetaweb.globo.com


Texto Anterior: Pré-vestibular: Cursinho grátis da Unifesp abre inscrições
Próximo Texto: Geografia: Transtornos causados pelas chuvas
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.