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LITERATURA
"A Igreja do Diabo': uma reflexão sobre a ética
THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quem ainda não se deliciou
com a ironia e o sarcasmo de
Machado de Assis pode começar a fazê-lo pela leitura de seus
contos. Entre os mais conhecidos está "A Igreja do Diabo", inserido na coletânea "Histórias
sem Data" (1884), um dos mais
atuais textos de Machado de
Assis que, aliás, já foi tema de
redação na Fuvest.
Trata-se de alegoria em que o
Diabo decide fundar uma igreja, ou melhor, institucionalizar
a sua. Faz uma espécie de retrato em negativo da Igreja de
Deus. Negar será seu modo de
afirmar: "Há muitos modos de
afirmar, há só um de negar tudo". O Diabo anseia pela organização, pelas regras, enfim,
pelo ritual da Igreja Católica.
Assim, toma emprestado o vocabulário da Igreja (prédicas,
bulas, novenas).
Ao Diabo seduz a idéia de ter
fiéis que o adorem num templo.
A ironia é patente: Machado
destila seu arsenal de críticas à
Igreja e a suas fórmulas de
amor ao próximo.
A igreja do Diabo será a negação da igreja de Deus. Será despojada de conteúdo simbólico.
O vinho e o pão, distribuídos à
farta, serão elementos materiais. A concepção que o Diabo
tem das coisas é materialista.
Sua doutrina retirará dos homens a culpa (que funda o cristianismo) para que exerçam
sua natural índole materialista.
O vocabulário das finanças perpassa o discurso do Demônio
(custo alto, hospedaria barata).
O Diabo, com seu discurso
retórico, desenvolve uma engenhosa parábola. Transforma,
com seus sofismas, os antigos
vícios em virtudes. A soberba, a
luxúria, a preguiça, a gula convertem-se em virtudes. Há uma
desmetaforização dos símbolos
da igreja.
A demonstração mais eloqüente da teoria aparece na defesa da venalidade: "A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos". E prossegue
em sua lógica desprovida de
moral: "Se tu podes vender a
tua casa, o teu boi, o teu sapato,
o teu chapéu, cousas que são
tuas por uma razão jurídica e
legal, mas que, em todo caso,
estão fora de ti, como é que não
podes vender a tua opinião, o
teu voto, a tua palavra, a tua fé,
cousas que são mais do que
tuas, porque são a tua própria
consciência, isto é, tu mesmo?".
Não é preciso ir muito longe
para descobrir que o Diabo angariou muitos adeptos à sua
doutrina. Afinal, o homem poderia continuar sendo exatamente como é e sem a culpa.
A surpresa dá-se no momento em que o Demônio flagra
seus fiéis desobedecerem aos
seus preceitos e, às escondidas,
praticarem as antigas virtudes
cristãs. O texto vale uma reflexão sobre a natureza humana,
atualíssimo nestes tempos em
que a ética está em debate.
THAÍS NICOLETI DE CAMARGO, autora dos livros "Redação Linha a Linha" (Publifolha) e
"Uso da Vírgula" (Manole), é colunista da Folha
Online e do site gazetaweb.globo.com
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