São Paulo, quinta-feira, 25 de novembro de 2004
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VALE A PENA SABER

LITERATURA


Contos de Clarice são convite à reflexão

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há quem diga que não se pode gostar "mais ou menos" de Clarice Lispector. Os leitores dividem-se entre aqueles que se identificam de imediato com o tom intimista das narrativas em que aparentemente nada acontece e aqueles que não têm afinidade com o viés pelo qual a autora conta os fatos.
Se a expectativa do leitor for a mera fruição de uma seqüência de ações encadeadas com vista a ascender a um clímax para chegar a um desfecho surpreendente, é bem provável que se sinta frustrado e com a impressão de "não ter entendido nada". Essa sensação, no entanto, desfaz-se quando nos deixamos envolver pela situação às vezes mais descrita que propriamente narrada.
Interessa ao narrador mostrar a experiência que transforma o(s) personagem(ns). Uma revelação é, em geral, desencadeada por um acontecimento fortuito, por um fato mínimo, capaz, todavia, de despertar um estado de consciência não raro doloroso -como talvez seja todo e qualquer despertar da consciência.
No conto "Feliz Aniversário", do livro "Laços de Família", a circunstância posta é a comemoração dos 89 anos de vida da matriarca de uma família. A situação parte do prosaico encontro entre familiares e revela a animosidade velada que paira entre eles. Mas a história não fica nisso. O narrador assume o olhar da aniversariante, que percebe a morna complacência daqueles que, uma vez por ano, lhe dedicam a sua paciência.
A uma velhinha cabe, na ótica cínica das famílias frouxas, a delicadeza desanimada de quem, por muito favor, ainda está vivo. Mas dona Anita, em seu silêncio acumulado, apenas observa a coreografia de uma legião de fracos, incapazes de amar, perdidos que estão na vida cotidiana.
Ao dar a primeira talhada no bolo, "com punho de assassina", com a força que vem do desprezo que sente pela própria prole, ela incomoda com sua paradoxal vitalidade. Essa ação cresce e transforma-se na cusparada fatídica, expressão maior do desdém.
Uma das noras, Cordélia, parece ainda ter salvação. É a única que espera da velha uma lição de sabedoria, é a única que desesperadamente ainda quer uma chance de viver (de amar) e se vê diante de um dilema -mais adivinhado pelo leitor que explicitado pelo narrador. As histórias de Clarice giram em torno do amor, no que esse sentimento tem de mais dilacerante e de desafiador.


Thaís Nicoleti de Camargo é consultora de língua portuguesa da Folha e autora dos livros "Redação Linha a Linha" (Publifolha) e "Uso da Vírgula" (Manole).
E-mail: tnicoleti@folhasp.com.br


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