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VALE A PENA SABER
LITERATURA
Contos de Clarice são convite à reflexão
THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Há quem diga que não se pode
gostar "mais ou menos" de
Clarice Lispector. Os leitores
dividem-se entre aqueles que
se identificam de imediato com
o tom intimista das narrativas
em que aparentemente nada
acontece e aqueles que não têm
afinidade com o viés pelo qual a
autora conta os fatos.
Se a expectativa do leitor for a
mera fruição de uma seqüência
de ações encadeadas com vista
a ascender a um clímax para
chegar a um desfecho surpreendente, é bem provável
que se sinta frustrado e com a
impressão de "não ter entendido nada". Essa sensação, no entanto, desfaz-se quando nos
deixamos envolver pela situação às vezes mais descrita que
propriamente narrada.
Interessa ao narrador mostrar a experiência que transforma o(s) personagem(ns). Uma
revelação é, em geral, desencadeada por um acontecimento
fortuito, por um fato mínimo,
capaz, todavia, de despertar
um estado de consciência não
raro doloroso -como talvez
seja todo e qualquer despertar
da consciência.
No conto "Feliz Aniversário",
do livro "Laços de Família", a
circunstância posta é a comemoração dos 89 anos de vida da
matriarca de uma família. A situação parte do prosaico encontro entre familiares e revela
a animosidade velada que paira
entre eles. Mas a história não fica nisso. O narrador assume o
olhar da aniversariante, que
percebe a morna complacência
daqueles que, uma vez por ano,
lhe dedicam a sua paciência.
A uma velhinha cabe, na ótica cínica das famílias frouxas, a
delicadeza desanimada de
quem, por muito favor, ainda
está vivo. Mas dona Anita, em
seu silêncio acumulado, apenas
observa a coreografia de uma
legião de fracos, incapazes de
amar, perdidos que estão na vida cotidiana.
Ao dar a primeira talhada no
bolo, "com punho de assassina", com a força que vem do
desprezo que sente pela própria prole, ela incomoda com
sua paradoxal vitalidade. Essa
ação cresce e transforma-se na
cusparada fatídica, expressão
maior do desdém.
Uma das noras, Cordélia, parece ainda ter salvação. É a única que espera da velha uma lição de sabedoria, é a única que
desesperadamente ainda quer
uma chance de viver (de amar)
e se vê diante de um dilema
-mais adivinhado pelo leitor
que explicitado pelo narrador.
As histórias de Clarice giram
em torno do amor, no que esse
sentimento tem de mais dilacerante e de desafiador.
Thaís Nicoleti de Camargo é consultora de língua portuguesa da Folha e autora dos livros "Redação Linha a Linha" (Publifolha) e "Uso da
Vírgula" (Manole).
E-mail: tnicoleti@folhasp.com.br
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