São Paulo, quarta-feira, 01 de janeiro de 2003

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MARCELO COELHO

Os heróis do proletariado e as saudades da roça

É mais para modesta, embora não seja pobre de maneira nenhuma, a exposição "Operários na Paulista", que fica em cartaz até 19 de janeiro na Galeria de Arte do Sesi. Reúnem-se ali diversas obras dos pintores do Grupo Santa Helena (Alfredo Volpi, Francisco Rebolo, Fúlvio Pennacchi, Aldo Bonadei e Clóvis Graciano, entre outros).
Em sua maioria, os artistas desse grupo eram de origem humilde: tendo começado a ganhar a vida como artesãos, na década de 20, só a partir de meados dos anos 30 se firmaram como pintores profissionais. Mário de Andrade foi o primeiro a chamá-los de "artistas proletários", num texto de 1939.
Em dois preciosos artigos do seu livro "O Olhar Amoroso", recém-lançado pela editora Momesso, o crítico Olívio Tavares de Araújo dá exemplos da simplicidade de hábitos e da espontaneidade pessoal de artistas como Rebolo e Volpi.
Este último, já consagrado como um dos maiores pintores brasileiros e desfrutando de especial prestígio entre os teóricos de vanguarda, não abandonara o costume de usar tamancos, como os feirantes e quitandeiros portugueses do tempo antigo.
Rebolo, sobre quem Olívio Tavares de Araújo fez um documentário na década de 70 (também exibido na mostra do Sesi), falava com característico sotaque popular, "no qual", diz o crítico, "os "l" soavam como "r", os "lh", como "i", e os finais em "am" dos verbos eram engolidos em um "o"." Numa de suas primeiras exposições, indagado por Sérgio Milliet sobre o que achava de Cézanne, viu-se em má situação. "Espremeu a memória, meditou, não se localizou, e respondeu, disfarçando, com candura: "Cézanne? Onde é mesmo que ele mora?"."
O endereço da exposição é avenida Paulista, 1.313, no prédio da Fiesp. Há como que uma desmaiada ironia no próprio título da mostra. Se os membros do Grupo Santa Helena logo deixaram de ser proletários para se tornar nomes de referência da pintura brasileira já em meados do século passado, não é exatamente como um ato de ruptura, ou como marco na conquista de um espaço tradicionalmente burguês, que a exposição assinala a presença de "operários na Paulista".
Afora a questão da origem pessoal dos pintores do grupo, não há muito de proletário nas telas da exposição: santos, marinhas, naturezas-mortas e paisagens rurais são bem mais frequentes do que cenas fabris ou denúncias sociais.
E talvez seja isso o mais curioso de tudo. Num interessante ensaio em defesa de Portinari, incluído na coletânea já citada, Olívio Tavares de Araújo observa como é rara a "dimensão épica" na pintura brasileira. Ainda que recaia sobre Portinari a acusação de ser no fundo um acadêmico, alguém que só superficialmente seguiu as inovações de Picasso, sua força é inegável, e sua contribuição à arte brasileira está precisamente no sentido "épico" com que cantou o mundo do trabalho, a tragédia da seca, os tipos populares.
Uso a expressão "cantar o mundo do trabalho" com deliberado mau gosto, porque disso Portinari foi encarregado nos murais que realizou para o governo varguista. Tavares de Araújo nota, contudo, que apesar da encomenda oficial não há nessas obras um tom ufanista, totalitário, triunfalista. Os heróis portinarianos do plantio do café, do cacau, do algodão se revelam, ao "olhar amoroso" do crítico, bastante tristes, ensimesmados, exaustos.
É essa mesma tristeza que encontramos nas obras mais especificamente "operárias" do grupo Santa Helena. As figuras desoladas de um quadro de Mario Zanini, de 1938, alguns trabalhadores de Pennacchi em 1939, pegam de surpresa o visitante da exposição na Paulista. O operariado do Brás, naquela época, estava longe de ser o protagonista da história universal e da liberdade dos povos; era derrotado e sujo. Se havia "sujeito épico", naquele tempo, era o imigrante europeu, o empresário desenvolvimentista.
Logo a seguir, na exposição, surge outra imagem do operário: "Homens e Fios Elétricos", tela de Clóvis Graciano datada de 1946, é tributária quase literal da retórica comunista. Como se sabe, Lênin dizia que o socialismo resultaria da soma do poder soviético e da eletrificação. Era mentira, e o quadro de Graciano não soa muito sincero tampouco.
Uma terceira imagem, não digo do operário, mas da "gente do povo", é, entretanto, onipresente na exposição. Cenas de São João, bailes caipiras, matutos jogando cartas numa vendinha e até um São Francisco curtido de sol -o que mais se vê nos quadros de Pennacchi, Volpi e Rebolo dos anos 40 é o homem do interior, é a nostalgia da roça.
As paisagens quase rurais do Canindé (quadro de Zanini), a bucólica Ubatuba de Humberto Rosa, até mesmo o superpovoado cabaré de Manoel Martins, somam-se aos conhecidos arvoredos e caminhos de Rebolo no que se pode chamar não de pintura operária, mas de "pastoral paulistana", onde se combinam a saudade da Toscana e do Vêneto com a projeção de uma terra domesticada, amena, livre das hostilidades industriais, singela, brasileira.
Seria tentador fazer um paralelo entre esses "operários na Paulista" e o caso, mais momentoso, do "operário no Planalto", para usar uma frase bastante comum nos dias que antecederam a posse de Lula na Presidência da República.
Não me disponho a tanto. Cercado de técnicos, de "apparatchiks", de economistas, de políticos e empresários, Lula me parece, em todo caso, resguardar, alimentar e mesmo explorar uma imagem de espontaneidade bem no estilo de Rebolo e Pennacchi.
Dos momentos de choro às piadinhas sobre futebol, do hábito da churrascada a um certo jeito maroto de dar entrevistas, a figura de Lula se torna anti-épica ao mesmo tempo em que reafirma seu caráter popular. Outros membros do PT fazem força para mudar rapidamente de discurso e de ideologia. Ao contrário, Lula parece ter se livrado, por fim, das teorias, dos programas, das discussões partidárias; chega ao poder como se sentisse um grande alívio.


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