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MARCELO COELHO
Os heróis do proletariado e as saudades da roça
É mais para modesta, embora não seja pobre de maneira
nenhuma, a exposição "Operários na Paulista", que fica em cartaz até 19 de janeiro na Galeria de
Arte do Sesi. Reúnem-se ali diversas obras dos pintores do Grupo
Santa Helena (Alfredo Volpi,
Francisco Rebolo, Fúlvio Pennacchi, Aldo Bonadei e Clóvis Graciano, entre outros).
Em sua maioria, os artistas desse grupo eram de origem humilde: tendo começado a ganhar a
vida como artesãos, na década de
20, só a partir de meados dos anos
30 se firmaram como pintores
profissionais. Mário de Andrade
foi o primeiro a chamá-los de "artistas proletários", num texto de
1939.
Em dois preciosos artigos do seu
livro "O Olhar Amoroso", recém-lançado pela editora Momesso, o
crítico Olívio Tavares de Araújo
dá exemplos da simplicidade de
hábitos e da espontaneidade pessoal de artistas como Rebolo e
Volpi.
Este último, já consagrado como um dos maiores pintores brasileiros e desfrutando de especial
prestígio entre os teóricos de vanguarda, não abandonara o costume de usar tamancos, como os feirantes e quitandeiros portugueses
do tempo antigo.
Rebolo, sobre quem Olívio Tavares de Araújo fez um documentário na década de 70 (também
exibido na mostra do Sesi), falava
com característico sotaque popular, "no qual", diz o crítico, "os "l"
soavam como "r", os "lh", como "i", e
os finais em "am" dos verbos eram
engolidos em um "o"." Numa de
suas primeiras exposições, indagado por Sérgio Milliet sobre o
que achava de Cézanne, viu-se
em má situação. "Espremeu a
memória, meditou, não se localizou, e respondeu, disfarçando,
com candura: "Cézanne? Onde é
mesmo que ele mora?"."
O endereço da exposição é avenida Paulista, 1.313, no prédio da
Fiesp. Há como que uma desmaiada ironia no próprio título
da mostra. Se os membros do
Grupo Santa Helena logo deixaram de ser proletários para se tornar nomes de referência da pintura brasileira já em meados do século passado, não é exatamente
como um ato de ruptura, ou como
marco na conquista de um espaço
tradicionalmente burguês, que a
exposição assinala a presença de
"operários na Paulista".
Afora a questão da origem pessoal dos pintores do grupo, não há
muito de proletário nas telas da
exposição: santos, marinhas, naturezas-mortas e paisagens rurais
são bem mais frequentes do que
cenas fabris ou denúncias sociais.
E talvez seja isso o mais curioso
de tudo. Num interessante ensaio
em defesa de Portinari, incluído
na coletânea já citada, Olívio Tavares de Araújo observa como é
rara a "dimensão épica" na pintura brasileira. Ainda que recaia
sobre Portinari a acusação de ser
no fundo um acadêmico, alguém
que só superficialmente seguiu as
inovações de Picasso, sua força é
inegável, e sua contribuição à arte brasileira está precisamente no
sentido "épico" com que cantou o
mundo do trabalho, a tragédia da
seca, os tipos populares.
Uso a expressão "cantar o mundo do trabalho" com deliberado
mau gosto, porque disso Portinari
foi encarregado nos murais que
realizou para o governo varguista. Tavares de Araújo nota, contudo, que apesar da encomenda
oficial não há nessas obras um
tom ufanista, totalitário, triunfalista. Os heróis portinarianos do
plantio do café, do cacau, do algodão se revelam, ao "olhar amoroso" do crítico, bastante tristes, ensimesmados, exaustos.
É essa mesma tristeza que encontramos nas obras mais especificamente "operárias" do grupo
Santa Helena. As figuras desoladas de um quadro de Mario Zanini, de 1938, alguns trabalhadores
de Pennacchi em 1939, pegam de
surpresa o visitante da exposição
na Paulista. O operariado do
Brás, naquela época, estava longe
de ser o protagonista da história
universal e da liberdade dos povos; era derrotado e sujo. Se havia
"sujeito épico", naquele tempo,
era o imigrante europeu, o empresário desenvolvimentista.
Logo a seguir, na exposição,
surge outra imagem do operário:
"Homens e Fios Elétricos", tela de
Clóvis Graciano datada de 1946, é
tributária quase literal da retórica comunista. Como se sabe, Lênin dizia que o socialismo resultaria da soma do poder soviético e
da eletrificação. Era mentira, e o
quadro de Graciano não soa muito sincero tampouco.
Uma terceira imagem, não digo
do operário, mas da "gente do povo", é, entretanto, onipresente na
exposição. Cenas de São João,
bailes caipiras, matutos jogando
cartas numa vendinha e até um
São Francisco curtido de sol -o
que mais se vê nos quadros de
Pennacchi, Volpi e Rebolo dos
anos 40 é o homem do interior, é a
nostalgia da roça.
As paisagens quase rurais do
Canindé (quadro de Zanini), a
bucólica Ubatuba de Humberto
Rosa, até mesmo o superpovoado
cabaré de Manoel Martins, somam-se aos conhecidos arvoredos e caminhos de Rebolo no que
se pode chamar não de pintura
operária, mas de "pastoral paulistana", onde se combinam a saudade da Toscana e do Vêneto com
a projeção de uma terra domesticada, amena, livre das hostilidades industriais, singela, brasileira.
Seria tentador fazer um paralelo entre esses "operários na Paulista" e o caso, mais momentoso,
do "operário no Planalto", para
usar uma frase bastante comum
nos dias que antecederam a posse
de Lula na Presidência da República.
Não me disponho a tanto. Cercado de técnicos, de "apparatchiks", de economistas, de políticos e empresários, Lula me parece, em todo caso, resguardar, alimentar e mesmo explorar uma
imagem de espontaneidade bem
no estilo de Rebolo e Pennacchi.
Dos momentos de choro às piadinhas sobre futebol, do hábito da
churrascada a um certo jeito maroto de dar entrevistas, a figura
de Lula se torna anti-épica ao
mesmo tempo em que reafirma
seu caráter popular. Outros membros do PT fazem força para mudar rapidamente de discurso e de
ideologia. Ao contrário, Lula parece ter se livrado, por fim, das
teorias, dos programas, das discussões partidárias; chega ao poder como se sentisse um grande
alívio.
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