São Paulo, sábado, 01 de janeiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"O COMPLEXO DE PORTNOY"/ ROMANCE

Lançada em 1969, obra maior do escritor norte-americano ganha reedição

Roth traz o hilariante desafogo de Portnoy

BERNARDO AJZENBEG
ESPECIAL PARA A FOLHA

Philip Roth publicou nos últimos 12 anos uma impressionante meia dúzia de romances de primeira grandeza. Nesse período, amealhou vários prêmios e consolidou-se como um dos maiores escritores norte-americanos da atualidade.
Apesar de seu sarcasmo e ironia refinada, de suas provocações picantes e cenas bizarras, apesar de imperdíveis, nenhuma dessas obras, porém, alcança "O Complexo de Portnoy" no grau de hilaridade e na maneira escancarada de tratar de coisas "simples" como sexo e masturbação, preconceito, família, auto-erotismo, complexo de Édipo.
Publicado em 69, esse romance, que ganha nova tradução no Brasil (mais coloquial e mais fluente do que a primeira, de 70), é uma "transcrição" dos desabafos de Alexander Portnoy, advogado judeu de Nova York, solteiro, ao seu psicanalista. E, como em toda terapia que se preze, ninguém da família escapa.
O pai aparece como um moleirão vendedor de seguros, submisso à mulher, vítima de uma prisão de ventre permanente e de um desespero mudo.
A mãe superprotetora, folclórica mãe judia, entra em pânico quando descobre que o seu Alex, criança, come hambúrguer escondido, ou quando constata que ele, adulto, adquiriu um tapete gasto, propenso a escorregões.
"Um homem judeu com os pais vivos é um recém-nascido indefeso!", diz Portnoy ao dr. Spielvogel. "Por favor, me ajude e depressa! Me liberte desse papel de filho sufocado numa piada judaica! Porque está começando a perder a graça aos 33 anos!".
Em outro trecho, o mesmo apelo: "Chega de ser um bom menino judeu, agradando meus pais em público e esfolando o ganso no meu quarto!".
Quanto à irmã, Hannah, cinco anos mais velha, basta citar um episódio da adolescência do protagonista (ele está trancado no banheiro):
"(...) me inclino para a frente, sentado no vaso, e com um gemido de um animal espancado esguicho três gotas quase totalmente líquidas no pedacinho de pano em que minha irmã de dezoito anos guarda os parcos seios que tem. É meu quarto orgasmo do dia. Quando é que vai começar a sair sangue?".
Com óbvios traços autobiográficos, irônico e detalhista, Roth, 71, investe no relato de casos com garotas não-judias, conflitos de família pequeno-burguesa e recordações contraditórias, obcecadas, cáusticas.
Como no hilariante relato das idas mensais com o pai à sauna (a "shvitz"):
"Fico em posição de sentido entre as pernas de meu pai enquanto ele me cobre da cabeça aos pés com uma grossa camada de espuma de sabão e olho com admiração para o que pende do banco de mármore em que ele está sentado. Seu escroto parece um rosto comprido e encarquilhado de um velho com um ovo enfiado em cada lado da papada caída, já o meu lembra mais uma bolsinha mínima e rosada pendurada no pulso de uma boneca de menina..."
Ele prossegue:
"Quanto ao "shlong" dele, a mim, que tenho um pinto do tamanho da ponta de um dedo mínimo, ao qual minha mãe gosta de se referir em público (está bem, foi só uma vez, mas bastou essa vez para durar a vida inteira) como a minha "coisinha", o "shlong" dele me faz pensar nas mangueiras de incêndio que ficam enrodilhadas nos corredores da escola".
Nesse caudaloso desafogo, Portnoy implica com os "góis" (Jesus aparece como o Maricas da Palestina) e com seus próprios pares -"Me faça um favor, meu povo, pegue seu legado de sofrimento e enfie no cu porque por acaso eu também sou um ser humano!". Mas não escapa do dilema de se sentir ao mesmo tempo atraído por aqueles e amado por estes.
Chocante há 35 anos, "O Complexo de Portnoy" ainda o é na atualidade. Menos, talvez, pelo linguajar ousado e ferino do que pela crueza com que, já um clássico do século 20, trata de problemas públicos e privados que, nesse período, só fizeram se exacerbar.


Bernardo Ajzenberg é autor dos romances "A Gaiola de Faraday" e "Variações Goldman", ambos pela editora Rocco, entre outros livros, e assessor-executivo do Instituto Moreira Salles

O Complexo de Portnoy
    
Autor: Philip Roth
Tradução: Paulo Henriques Britto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 59,50 (264 págs.)


Texto Anterior: Fernando Gabeira: Putas tristes de García Márquez
Próximo Texto: Panorâmica - Ilustrada: Morre aos 94 anos a lenda do jazz Artie Shaw
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.