São Paulo, sábado, 01 de janeiro de 2011

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CRÍTICA FILOSOFIA

Tradução de Montaigne é adequada para entender crise de identidade atual

VLADIMIR SAFATLE
COLUNISTA DA FOLHA

A constituição da subjetividade moderna tem uma longa pré-história.
Antes de Descartes (1596-1650), de Locke (1632-1704), vários foram os momentos em que aquilo que compreendemos atualmente por "consciência" (enquanto fundamento de nossa identidade) pareceu querer ganhar corpo. Certamente, uma das bases deste impulso encontra-se neste estranho desejo de tomar a palavra para simplesmente "falar de si".
Este falar de si não pode ser compreendido apenas como o ato de organizar a vida a partir de uma narrativa coerente, ato desesperado de produção de sentido a partir da contingência dos acontecimentos.
Na verdade, ele é um modo renovado de descrição do mundo. Modo de descrição através de perspectivas.
Bento Prado Júnior havia identificado bem como este novo modo de apresentação do mundo nascia da construção do discurso da primeira pessoa do singular através de momentos decisivos da filosofia. "As Confissões", de Agostinho (354-430) (e posteriormente de Rousseau); os "Ensaios", de Montaigne (1533-1592); as "Meditações", de Descartes; os "Pensamentos", de Pascal (1623-1662): todos estes são exemplos da maneira como a subjetividade moderna só foi capaz de aparecer graças à consolidação de uma nova modalidade de discurso onde o mundo passa pelo interior do "si mesmo".
Vejamos, por exemplo, o que diz Montaigne. Ao escrever os "Ensaios", afirma o autor: "Não me propus outro fim além do doméstico e privado", "Sou eu mesmo a matéria do meu livro". Se fosse permitido: "Teria com muito gosto me pintado por inteiro e totalmente nu". Mas o que mostra este "eu mesmo" impulsionado pelo desejo de desnudamento?
No fundo, uma nova forma de estar no mundo. O que não poderia ser diferente já que este "eu mesmo" não é uma substância ou um conjunto de propriedades e faculdades psicológicas. Ele é uma forma de escrever. Na verdade, escrever um mundo marcado pela dissolução de suas certezas, pela desagregação da estabilidade de seus objetos. Mundo que sentiu as clivagens da reforma, a intolerância da contrarreforma, que sentiu a relatividade de suas formas de vida com a descoberta de "novos mundos". Se quisermos ser mais suscintos: mundo em crise.
Quando o "eu" sobe a cena e toma a palavra é para transformar esta insegurança em princípio de vida.
Neste sentido, é mais que oportuno o aparecimento de uma nova tradução dos "Ensaios". Em momentos onde "crises de identidades" se anunciam, ela nos lembra o que afinal estava em jogo na invenção do "eu".
Proposta pela associação entre Penguin Books e Companhia das Letras, tal edição é, na verdade, uma seleção de alguns ensaios dos três livros que compõem a obra original (já editada entre nós pela UnB). Esta nova versão, além de trazer uma introdução de Auerbach, é resultado da tradução cuidadosa e extremamente bem sucedida de Rosa Freire d'Aguiar. Certamente, ela facilitará a divulgação de uma das maiores obras do pensamento. Uma obra que aparece como certidão de nascimento daquilo que procuramos ser.

OS ENSAIOS
AUTOR Montaigne
EDITORA Penguin-Companhia
TRADUÇÃO Rosa Freire d'Aguiar
QUANTO R$ 34 (616 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo




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