|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
HOMENAGEM
Antonio Callado viverá de sua música verbal
MATINAS SUZUKI JR.
do Conselho Editorial
O espaço solar de uma página da Ilustrada de sábado
foi ocupado desde abril de 1992
pelos artigos de Antonio Callado, morto na última terça-feira, aos 80 anos completados no
domingo.
Recebi a missão de ir ao Rio
convidá-lo para escrever para
a Folha.
Encontrei-o então, pela primeira vez, conduzido pelo Sérgio Augusto, no (também recentemente morto) bar que,
coincidentemente, tinha o seu
nome: o Antônio's.
Foi a única vez que fui ao
mais célebre bar do Brasil, que
irá sobreviver, entre outras
lembranças, graças ao livro de
Callado ``Bar Don Juan'', inspirado em um tempo no qual
bares representavam uma espécie de afirmação de sentimentos libertários e consolo
para impraticabilidade da vida política.
A volta de Callado às páginas de jornal se dava, em parte, pelas dificuldades financeiras que passava. Esse foi um
dos temas que sempre o atormentou: a difícil sobrevivência, em condições decentes, do
escritor brasileiro.
Janio de Freitas e Sérgio Augusto, sem que Callado soubesse, porque jamais concordaria
com a iniciativa dos amigos,
deram um toque para a direção da Folha.
E estava eu ali, naquele almoço que avançou um pouco
pela tarde do Leblon, a confirmar duas lendas que circulavam sobre Callado: a sua educação ``britânica'', difundida
pelo Nelson Rodrigues, e a sua
dignidade sem disfarce.
Eu havia lido ``Quarup''
quando tinha 15 anos, na biblioteca do meu pai, em Barretos, fascinado pelo erotismo,
pelo éter, pelos índios e pela
movimentação política que
não conseguia entender direito
(guardadas as proporções,
``Quarup'' representou para
minha geração o que a série da
Globo "Anos Rebeldes'' representou para a geração da cara
pintada).
``Quarup'' foi um misto de
educação sentimental e política. Meu pai, udenista e lacerdista, mas também iluminista,
não via com bons olhos aquela
leitura naquela idade, porém
não me reprimiu.
Depois, na universidade, sendo área de influência, como se
dizia na época, dos trotskistas,
alistei-me nas vanguardas e
passei a renegar Callado, o
Partido Comunista e todas as
tentativas de se fazer arte politicamente engajada.
Davi Arrigucci Jr., o grande
professor da minha geração,
com o ensaio definitivo sobre
``Reflexos do Baile'', colocou
Callado em seu lugar certo na
literatura brasileira e, com isso, começou a abalar as nossas
convicções de militantes da Libelu sobre a literatura de vocação política no Brasil.
Além de ser uma análise riquíssima do livro de Antonio
Callado, o ensaio de Davi Arrigucci Jr. traz também uma excelente reflexão sobre as relações entre o jornalismo e a literatura, que recomendo aos estudantes das duas matérias.
A análise crítica de Arrigucci
foi enviada originalmente ao
jornal ``Opinião'', em 1976,
época em que comecei a colaborar nele e a iniciar a minha
vida em jornal.
O extinto e importante semanário carioca, de propriedade
de Fernando Gasparian, só
conseguiu o artigo na segunda
tentativa junto à Censura Federal, sempre muito atenta ao
nome Antonio Callado.
Pois foi justamente o ensaio
``O Baile das Trevas e das
Águas'' o tema do início da entrevista que Maurício Stycer e
eu fizemos com Callado, no seu
apartamento do Alto Leblon,
uma semana antes da sua
morte.
Não tivemos tempo de perguntar nada. Ele abriu a entrevista fazendo uma declaração
que, aos nossos ouvidos, soou
como uma espécie de testamento literário, de ajuste de
contas consigo mesmo.
A ele, se a entrevista não tivesse continuidade, bastava
deixar registrado o seguinte: o
único de seus livros que literariamente conta é ``Reflexos do
Baile'' e ele era grato ao Davi
Arrigucci Jr. por ter percebido
o fato.
Callado estava muito magro,
sem forças nem sequer para se
levantar da poltrona. Eu havia
sido alertado pelo Luiz Alberto
Bahia e pelo Janio de Freitas
sobre o seu verdadeiro estado
de saúde (metastase cerebral,
depois de muitos anos convivendo com essa "epidemia''
masculina que é o câncer de
próstata).
Como estava às vésperas do
seu aniversário de 80 anos,
achava que a Folha deveria
entrevistá-lo -aliás, o Maurício Stycer já estava tentando a
entrevista quando o Otavio
Frias Filho, sem saber do projeto do Stycer, sugeriu que eu
tentasse falar com o Callado.
Ficamos aguardando o dia
em que ele poderia conversar
conosco. Marcamos para a terça-feira, dia 21 de janeiro, às
16h.
Na sala de seu apartamento,
de camisa desabotoada e de
calção, por causa do calor, livros empilhados por toda parte, cercado dos Portinaris que
lhe restaram (teve que vender
os maiores, para resolver os
problemas financeiros) e de
uma gravura que Djanira enviou a ele e aos companheiros
de prisão do regime militar, ele
respondeu, com a garganta seca, a duas horas de perguntas.
Tempo que julgamos suficiente para não cansá-lo muito, ainda que ele insistisse que
não queria parar a entrevista.
Tempo nada suficiente para
perguntar tudo o que gostaríamos de perguntar ao escritor,
ao jornalista, ao homem.
A doença deixou Antonio
Callado deprimido. Ele mesmo
reduzia a pó a sua contribuição para a literatura, para o
jornalismo e para a vida pública brasileira. Estava bastante
pessimista com a História.
Repetia várias vezes a idéia
de que o Brasil sempre perde a
oportunidade para dar certo.
Às vezes, suas respostas não estavam relacionadas à pergunta formulada. Mas, na maior
parte do tempo, as idéias eram
bastante claras e a memória
funcionava invejavelmente.
Não se sentia estimulado a
voltar à carreira de escritor,
como se exercitasse uma espécie de consciência de trabalho
acabado.
E já que o momento era de
acerto de contas, aproveitou
para falar do lado positivo e do
lado negativo que via em cada
companheiro, em cada contemporâneo, em cada amigo
(estava, em vida, enfim liberto
da sua ``britanicidade'').
Não sou especialista para entrar no mérito da discussão literária sobre a obra de Callado. Confesso que fiquei surpreso com o trabalho de linguagem ao reler, 20 anos depois,
``Reflexos do Baile'' para a entrevista.
Mas, apesar do próprio Callado, tenho certeza que ``Quarup'' ficará, ainda por muito
tempo, como o grande livro de
uma época, sendo ou não sendo a sua literatura maior (na
verdade, não vejo muito como
comparar os dois livros, importantes por razões diversas).
Há escritores que são maiores do que a obra; existem
obras que são maiores do que a
questão especificamente literária.
Se essas duas frases são verdadeiras para a vida literária
dos países do primeiro time
mundial, são ainda mais verdadeiras nessa frágil republiqueta das letras brasileira. E
mais verdadeiras ainda para
Antonio Callado.
Levei para a entrevista o surrado exemplar de ``Quarup''
(Civilização Brasileira, 2¦ edição, 1967) que li na adolescência interiorana.
Pedi uma dedicatória. Callado disse que fazia muito tempo
que não conseguia escrever.
Com a mão trêmula, escreveu
a dedicatória até a data e depois comemorou o feito com
um sorriso de garoto.
Perto de morrer, não se furtou às últimas gentilezas. Pediu a sua mulher, Ana Arruda,
que tanto nos ajudou, que ligasse para o Maurício Stycer e
para mim agradecendo a publicação da entrevista.
Eu anotei acima que ele não
queria mais escrever. Não é
bem verdade. Declarou, no fim
da entrevista (leia o texto do
Maurício Stycer amanhã no
caderno Mais!), que estava ansioso para voltar a escrever a
sua coluna de todos os sábados, aqui na Ilustrada.
Contei toda essa longa história somente para você, leitor
do Callado do dia de hoje, saber esta informação: ele pensava em você.
Só para você, se é que isso
serve de consolo, lembro as palavras de Nelson Rodrigues, escritas em 69: ``...Qualquer artigo de Callado é uma espécie de
quarteto de cordas, de uma insuportável delícia auditiva. E
será assim, eternamente assim.
Daqui a 200 anos, ele viverá de
sua música verbal''.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|