São Paulo, sábado, 1 de fevereiro de 1997.

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HOMENAGEM
Antonio Callado viverá de sua música verbal

MATINAS SUZUKI JR.
do Conselho Editorial

O espaço solar de uma página da Ilustrada de sábado foi ocupado desde abril de 1992 pelos artigos de Antonio Callado, morto na última terça-feira, aos 80 anos completados no domingo.
Recebi a missão de ir ao Rio convidá-lo para escrever para a Folha.
Encontrei-o então, pela primeira vez, conduzido pelo Sérgio Augusto, no (também recentemente morto) bar que, coincidentemente, tinha o seu nome: o Antônio's.
Foi a única vez que fui ao mais célebre bar do Brasil, que irá sobreviver, entre outras lembranças, graças ao livro de Callado ``Bar Don Juan'', inspirado em um tempo no qual bares representavam uma espécie de afirmação de sentimentos libertários e consolo para impraticabilidade da vida política.
A volta de Callado às páginas de jornal se dava, em parte, pelas dificuldades financeiras que passava. Esse foi um dos temas que sempre o atormentou: a difícil sobrevivência, em condições decentes, do escritor brasileiro.
Janio de Freitas e Sérgio Augusto, sem que Callado soubesse, porque jamais concordaria com a iniciativa dos amigos, deram um toque para a direção da Folha.
E estava eu ali, naquele almoço que avançou um pouco pela tarde do Leblon, a confirmar duas lendas que circulavam sobre Callado: a sua educação ``britânica'', difundida pelo Nelson Rodrigues, e a sua dignidade sem disfarce.
Eu havia lido ``Quarup'' quando tinha 15 anos, na biblioteca do meu pai, em Barretos, fascinado pelo erotismo, pelo éter, pelos índios e pela movimentação política que não conseguia entender direito (guardadas as proporções, ``Quarup'' representou para minha geração o que a série da Globo "Anos Rebeldes'' representou para a geração da cara pintada).
``Quarup'' foi um misto de educação sentimental e política. Meu pai, udenista e lacerdista, mas também iluminista, não via com bons olhos aquela leitura naquela idade, porém não me reprimiu.
Depois, na universidade, sendo área de influência, como se dizia na época, dos trotskistas, alistei-me nas vanguardas e passei a renegar Callado, o Partido Comunista e todas as tentativas de se fazer arte politicamente engajada.
Davi Arrigucci Jr., o grande professor da minha geração, com o ensaio definitivo sobre ``Reflexos do Baile'', colocou Callado em seu lugar certo na literatura brasileira e, com isso, começou a abalar as nossas convicções de militantes da Libelu sobre a literatura de vocação política no Brasil.
Além de ser uma análise riquíssima do livro de Antonio Callado, o ensaio de Davi Arrigucci Jr. traz também uma excelente reflexão sobre as relações entre o jornalismo e a literatura, que recomendo aos estudantes das duas matérias.
A análise crítica de Arrigucci foi enviada originalmente ao jornal ``Opinião'', em 1976, época em que comecei a colaborar nele e a iniciar a minha vida em jornal.
O extinto e importante semanário carioca, de propriedade de Fernando Gasparian, só conseguiu o artigo na segunda tentativa junto à Censura Federal, sempre muito atenta ao nome Antonio Callado.
Pois foi justamente o ensaio ``O Baile das Trevas e das Águas'' o tema do início da entrevista que Maurício Stycer e eu fizemos com Callado, no seu apartamento do Alto Leblon, uma semana antes da sua morte.
Não tivemos tempo de perguntar nada. Ele abriu a entrevista fazendo uma declaração que, aos nossos ouvidos, soou como uma espécie de testamento literário, de ajuste de contas consigo mesmo.
A ele, se a entrevista não tivesse continuidade, bastava deixar registrado o seguinte: o único de seus livros que literariamente conta é ``Reflexos do Baile'' e ele era grato ao Davi Arrigucci Jr. por ter percebido o fato.
Callado estava muito magro, sem forças nem sequer para se levantar da poltrona. Eu havia sido alertado pelo Luiz Alberto Bahia e pelo Janio de Freitas sobre o seu verdadeiro estado de saúde (metastase cerebral, depois de muitos anos convivendo com essa "epidemia'' masculina que é o câncer de próstata).
Como estava às vésperas do seu aniversário de 80 anos, achava que a Folha deveria entrevistá-lo -aliás, o Maurício Stycer já estava tentando a entrevista quando o Otavio Frias Filho, sem saber do projeto do Stycer, sugeriu que eu tentasse falar com o Callado.
Ficamos aguardando o dia em que ele poderia conversar conosco. Marcamos para a terça-feira, dia 21 de janeiro, às 16h.
Na sala de seu apartamento, de camisa desabotoada e de calção, por causa do calor, livros empilhados por toda parte, cercado dos Portinaris que lhe restaram (teve que vender os maiores, para resolver os problemas financeiros) e de uma gravura que Djanira enviou a ele e aos companheiros de prisão do regime militar, ele respondeu, com a garganta seca, a duas horas de perguntas.
Tempo que julgamos suficiente para não cansá-lo muito, ainda que ele insistisse que não queria parar a entrevista. Tempo nada suficiente para perguntar tudo o que gostaríamos de perguntar ao escritor, ao jornalista, ao homem.
A doença deixou Antonio Callado deprimido. Ele mesmo reduzia a pó a sua contribuição para a literatura, para o jornalismo e para a vida pública brasileira. Estava bastante pessimista com a História.
Repetia várias vezes a idéia de que o Brasil sempre perde a oportunidade para dar certo. Às vezes, suas respostas não estavam relacionadas à pergunta formulada. Mas, na maior parte do tempo, as idéias eram bastante claras e a memória funcionava invejavelmente.
Não se sentia estimulado a voltar à carreira de escritor, como se exercitasse uma espécie de consciência de trabalho acabado.
E já que o momento era de acerto de contas, aproveitou para falar do lado positivo e do lado negativo que via em cada companheiro, em cada contemporâneo, em cada amigo (estava, em vida, enfim liberto da sua ``britanicidade'').
Não sou especialista para entrar no mérito da discussão literária sobre a obra de Callado. Confesso que fiquei surpreso com o trabalho de linguagem ao reler, 20 anos depois, ``Reflexos do Baile'' para a entrevista.
Mas, apesar do próprio Callado, tenho certeza que ``Quarup'' ficará, ainda por muito tempo, como o grande livro de uma época, sendo ou não sendo a sua literatura maior (na verdade, não vejo muito como comparar os dois livros, importantes por razões diversas).
Há escritores que são maiores do que a obra; existem obras que são maiores do que a questão especificamente literária.
Se essas duas frases são verdadeiras para a vida literária dos países do primeiro time mundial, são ainda mais verdadeiras nessa frágil republiqueta das letras brasileira. E mais verdadeiras ainda para Antonio Callado.
Levei para a entrevista o surrado exemplar de ``Quarup'' (Civilização Brasileira, 2¦ edição, 1967) que li na adolescência interiorana.
Pedi uma dedicatória. Callado disse que fazia muito tempo que não conseguia escrever. Com a mão trêmula, escreveu a dedicatória até a data e depois comemorou o feito com um sorriso de garoto.
Perto de morrer, não se furtou às últimas gentilezas. Pediu a sua mulher, Ana Arruda, que tanto nos ajudou, que ligasse para o Maurício Stycer e para mim agradecendo a publicação da entrevista.
Eu anotei acima que ele não queria mais escrever. Não é bem verdade. Declarou, no fim da entrevista (leia o texto do Maurício Stycer amanhã no caderno Mais!), que estava ansioso para voltar a escrever a sua coluna de todos os sábados, aqui na Ilustrada.
Contei toda essa longa história somente para você, leitor do Callado do dia de hoje, saber esta informação: ele pensava em você.
Só para você, se é que isso serve de consolo, lembro as palavras de Nelson Rodrigues, escritas em 69: ``...Qualquer artigo de Callado é uma espécie de quarteto de cordas, de uma insuportável delícia auditiva. E será assim, eternamente assim. Daqui a 200 anos, ele viverá de sua música verbal''.

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