São Paulo, sexta-feira, 01 de fevereiro de 2002

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DEBATE

Diretor argentino chega hoje a Porto Alegre para participar do 1º Fórum Mundial Audiovisual, que começa domingo

Solanas defende a televisão pública

SYLVIA COLOMBO
ENVIADA ESPECIAL A PORTO ALEGRE

"Sem democratizar o cinema e a televisão, dificilmente transformaremos nossas sociedades." Com propostas práticas para modificar a política de audiovisual na América Latina e cheio de ressentimento para com os governantes argentinos, chega hoje a Porto Alegre o cineasta portenho Fernando Solanas, 65.
Um dos mais importantes diretores argentinos do momento -entre seus filmes mais destacados estão "A Nuvem" (1998) e "Los Hijos de Fierro" (1972)- vem ao Brasil para participar do 1º Fórum Mundial Audiovisual, que ocorre dentro do Fórum Mundial Social, sediado a partir desta semana na capital gaúcha.
O encontro, promovido pela Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul e pelo Congresso Brasileiro de Cinema, reúne cineastas e profissionais da área do audiovisual e pretende discutir políticas públicas para o setor, mecanismos de proteção e a relação entre produções locais e a indústria cultural americana. O fórum do audiovisual acontece domingo e segunda no teatro do Centro de Eventos da PUC-RS. Entre as presenças confirmadas estão Robert Guediguian e Jean Druon (França), Jorge Sanchez (México), Nelson Pereira dos Santos, Roberto Farias e Suzana Amaral (Brasil).
Também acontece, até dia 8, uma mostra de filmes (com ingressos a R$ 3) na Casa de Cultura Mario Quintana, na Usina do Gasômetro e no cine Santander Cultural, todos na capital gaúcha.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista que Solanas concedeu à Folha.

Folha - Na sua opinião, que papel tem o audiovisual na integração dos países do Mercosul?
Fernando Solanas -
A democratização do audiovisual e da rede televisiva é um ponto fundamental do Mercosul. Um Mercosul que eu defendo que vá do Caribe à Terra do Fogo. Precisamos assumir que na América Latina hoje não existe um outro meio de impacto cultural e de influência no gosto, na moda e nas idéias das grandes maiorias que a televisão.
Isso é um fator de destruição de nossas identidades culturais, e nos está faltando um instrumento para transformar as consciências. Esse instrumento pode ser conseguido por meio de novas leis que precisam ser criadas.

Folha - Qual modelo de televisão o senhor defende?
Solanas -
A televisão na América Latina resume a cultura, o entretenimento, o esporte e a informação. Mas é uma televisão que se financia por anúncios dos grandes grupos econômicos e, por isso, acaba por se apresentar de forma fortemente americanizada como modelo cultural. Não estou negando o talento da televisão latino-americana, e a brasileira merece destaque. Mas não é possível que o cinema do Brasil e da Argentina não estejam sendo exibidos nas nossas emissoras. Não vejo uma explicação para isso. Converteram expressões profundas de nossas sociedades, como a literatura, o cinema e o teatro, numa zona marginal de nossas culturas.

Folha - Qual seria a solução?
Solanas -
Enquanto não democratizarmos os aparatos das redes televisivas, será muito difícil a transformação social e democrática dos nossos países. Isso só pode ser feito por meio de leis públicas. Essa nova legislação tem de assegurar uma informação objetiva, diversificada e verdadeira. Precisamos ter consciência de que informação e comunicação são direitos dos cidadãos, são serviços públicos. Não é possível que, num continente onde a televisão é o principal instrumento de educação, informação e entretenimento de tantos milhões de pessoas, não tenhamos desenvolvido ainda a prática de debater sobre o modelo de comunicação que queremos. Precisamos assegurar conteúdos democráticos, pluralismo cultural e informativo.

Folha - Em termos práticos...
Solanas -
Minha proposta, que defendo desde que fui deputado, é a criação de um canal regional do Mercosul. Seria um canal a cabo ou por satélite. Acho que é um outro escândalo o fato de que nos noticiários da Argentina e do Brasil não exista um tempo dedicado um ao outro. Não pode haver integração do Mercosul se não houver mais comunicação cotidiana entre os dois.
Nesse canal que proponho, haveria uma redação composta por profissionais de países do Mercosul. Teria de ter como objetivo ser um canal de excelência, como a BBC de Londres, um canal criativo e voltado à cultura, onde atuassem nossos melhores talentos jornalísticos e artísticos.

Folha - O cinema argentino se encontrava num excelente momento em 2001, quando explodiu a crise política e econômica. O que acredita que vá acontecer com a produção local?
Solanas -
A cultura, como sempre, fica em último lugar em momentos como esse. Desde que caiu o governo De la Rúa, ainda não se nomeou o secretário de Cultura. Isso é gravíssimo, porque estão concluindo o Orçamento de 2002 e não sabemos quem defendeu o dinheiro da cultura. Se é que o fizeram.

Folha - O senhor propôs um Mercosul do Caribe à Terra do Fogo. Como ele seria?
Solanas -
Teria de ser uma aliança baseada em democracia participativa e que buscasse, além das soluções econômicas, restaurar os direitos de cidadania que estão sendo burlados. A principal ofensa à cidadania é trair o mandato do voto. Na Argentina, isso se tornou uma coisa corriqueira. Votamos e no dia seguinte o presidente está a serviço de outras políticas. É como se tivessem entendido que, com o voto, ganham um direito privado, uma propriedade. Não entendem que um governo é um serviço. O que acho mais grave no caso da Argentina é que não há nenhuma penalidade contra a traição da vontade popular.

Folha - Analistas dizem que a Argentina tornou-se um exemplo de como a aplicação do sistema neoliberal pode ser prejudicial a um país do Terceiro Mundo. Concorda com isso?
Solanas -
Sim, claro. Além de termos personagens que colaboraram para agravar esse quadro, como Menem e Cavallo, o que tem sido mais perverso é o modelo que adotamos. Foi uma lição ao fundamentalismo do Fundo Monetário Internacional, para quem a Argentina era um exemplo, um aluno que obedecia e fazia os deveres com a cabeça abaixada. Nossa experiência é uma dolorosa lição.


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