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São Paulo, sábado, 01 de fevereiro de 2003

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Identidades em trânsito

Reuters
A escritora Margaret Atwood, após ganhar o Booker Prize em 2000



Margaret Atwood enfileira histórias curtas de solitários e investiga o sentimento de desconforto que vê na essência da literatura


FRANCESCA ANGIOLILLO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Uma moça que, na falta de charme natural, exercita seu tamanho maior que a média em quadras de tênis; uma professora de sucesso que relembra um amor quase platônico de sua juventude; uma mulher que zomba do marido amante de pássaros exóticos. É uma longa ciranda feminina a que sai das páginas escritas por Margaret Atwood, 63.
Mas a canadense Atwood não escreve sobre mulheres e para mulheres.
"Muitas mulheres são escritoras, metade da raça humana é de mulheres; não há motivo pelo qual não se devesse escrever sobre elas. É verdade que, se contarmos, há mais homens escrevendo sobre homens e mulheres, sobre mulheres. E, se pássaros pudessem escrever, pássaros escreveriam mais sobre pássaros", diz, rindo, a escritora à Folha.
Suas histórias são, por exemplo, também sobre um pequeno oriental de origem obscura que persegue uma tenista pouco atraente; sobre um homem que, nas lembranças de uma certa professora, aparece como jovem que reluta a crescer, mas que, afinal, tem filhos e engorda; sobre um marido que finge se deixar enganar pela mulher zombeteira, sem entender bem o que os une.
Ainda que o faça de forma bem-humorada, Atwood, autora do premiado "O Assassino Cego", rejeita -e não só para si, mas para as autoras em geral- o enquadramento sob a frouxa denominação de "literatura feminina".
Mesmo assim, foi essa a linha que a editora Rocco seguiu para divulgar os contos de "Dançarinas e Outras Histórias", que acaba de chegar ao Brasil. Pela primeira vez, os leitores brasileiros conhecerão o fôlego de Atwood para a narrativa breve.
"É bastante fácil escrever uma história somente com homens. É muito difícil escrever uma só com mulheres, a não ser que seja sobre freiras. E mesmo que seja sobre freiras, sempre haverá um padre para ouvir as confissões. Historicamente, foi sempre impossível para as mulheres estar num lugar em que haja unicamente mulheres. Para os homens é fácil: há o Exército, a Marinha, coisas tradicionalmente masculinas."
Ressalvas à parte, é verdade que a maioria dos contos de "Dançarinas" se conta pela óptica feminina. O que é normal, argumenta Atwood, pelo simples fato de que há uma mulher por trás deles e que "tudo que vai parar dentro de um livro teve de passar pela cabeça do escritor".
É nessa medida -e só- que Atwood admite ter posto um pouco de si nos personagens do livro, lançado originalmente em 77.
"Sempre há algo do escritor em tudo que ele faz, mas não é tão simples. Todos nós, claro, quando lemos um livro, pensamos: "Será que isso aconteceu com ele?". Somos curiosos. Mas não tiremos do escritor o poder da invenção. Escritores inventam. Eles mentem!"
Então "Dançarinas" não é um livro "sobre mulheres", exatamente. Tampouco, apesar de certos momentos assumidamente autobiográficos (como "Betty" ou "Dar à Luz"), é um livro escrito estritamente a partir de fatos da vida de Margaret Atwood ainda que descrições tão vívidas, ela mesma admite, "sempre" vêm de sua memória.
Fazendo outra tentativa de unir os 14 contos por um laço comum, eis que surge uma coincidência: em todos eles, as personagens atravessam uma fase de desajustamento com o meio. São identidades em trânsito.
Muitas vezes, trata-se de uma questão física: as personagens estão realmente fora de casa viajando, em quartos de hotéis, no meio da selva mexicana.
Em outros casos, trata-se de uma situação-limite, um momento de mudança: a adolescência da tenista Christine em "O Marciano", ou o desvario de Louise em "Polaridades".
Às vezes, a falta de rumo é tanto física como psicológica, como no acidente que colhe a "viajante profissional" Annette em "Um Artigo de Turismo".
"Não acredito que tenha sido consciente. Mas essa é a parte em que minha vida entra no livro, porque, entre 1960 e 1970, eu me mudei 15 vezes. Quando você é jovem, você tende a viajar um bocado: porque é jovem, para estudar, por causa de um trabalho. Muito do que experimentei então tem a ver com pessoas nessas condições, seja porque eu era uma delas ou porque conhecia um monte delas. Tem a ver com minha idade na época em que escrevi."
Talvez seja sintomático que a história que fecha o volume seja justamente sobre uma mulher prestes a dar à luz, a formação da família significando, via de regra, sentar acampamento.
Deixando de lado os fatos pessoais, porém, a autora não acredita que essa noção de desajuste seja uma característica específica de sua obra embora ressurja, fortemente, em "Madame Oráculo", por exemplo. Na opinião de Margaret Atwood, o sentimento de desconforto está na essência da literatura em si.
"Quantos órfãos há nos romances? Um monte. Porque, se mamãe e papai continuassem vivos, eles cuidariam do filho. Ou pode acontecer que eles sejam horríveis e a criança fuja. Mas, em suma, histórias são sobre pessoas sós. É da natureza da narrativa que o protagonista esteja isolado, ou só contra o destino."

DANÇARINAS E OUTRAS HISTÓRIAS.
Autora: Margaret Atwood. Editora: Rocco (0/xx/21/2507-2000). Tradução: Lia Wyler. Quanto: R$ 29,50. (216 págs.)



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