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LITERATURA
CRÍTICA
Obra de Paulo Francis escritor não se separa fácil da imagem do
jornalista
"Cabeças" são literatura ambiciosa de estilista único
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quando morreu, Paulo
Francis (1930-97) deixou-nos apenas duas das três "cabeças" que planejava para compor
sua figura de romancista: "Cabeça
de Papel", de 1978, e "Cabeça de
Negro", de 1979. "Cabeça", sem
mais, um ataque cardíaco abateu
antes de pronta, há seis anos, em
Nova York.
Janusiano, no lugar do Cérbero
pretendido, o escritor continua
difícil de separar da presença imperiosa do jornalista peso-pesado. A mesma que afiança, em efígie, a reedição dos romances pela
editora recém-criada que leva o
seu nome.
É sempre bom ter um amigo inteligente e informado. Paulo
Francis, democraticamente, prestou-se ao papel, iniciático, para
todos os que mastigaram letra de
imprensa no país nos últimos 50
anos.
Tempestuoso, opinião rápida e
afiada sobre tudo e todos, Francis
era um dos poucos fenômenos atmosféricos interessantes na crítica cultural brasileira, território
afeito às calmarias prolongadas, à
conciliação e troca de afagos, ao
palpite furado passando por juízo
fundado.
Combinando anatomia de costumes com espionagem, mundinho da zona sul carioca com jogo
político imperialista, os dois romances fazem o balanço das alternativas políticas do intelectual de
esquerda no Brasil, quando a
perspectiva da revolução havia sido engolida pela "gloriosa" e mesmo esta chegava a seus estertores.
Pelos olhos de Hugo Mann, crítico de cinema desiludido com a
militância trotskista, refugiado
numa independência de pensamento feroz, penetramos nas festas e farras da elite. Livre dos
freios da respeitabilidade pública,
o poder dança desfigurado e grotesco (como o ministro morbidamente obeso, sodomizado ao som
de "Tico-tico no Fubá"), cinicamente desfrutando e calando a
má consciência com paraísos artificiais (sexo, álcool e drogas).
Mesmo que lá fora o sol brilhe,
republicano, banhando a cidade
em cordialidade carioca, trata-se
de uma descida aos infernos.
Em "Cabeça de Papel", Paulo
Hesse, jornalista, seu gêmeo intelectual, faz a contraparte adesista,
tendo, para consumo público,
trocado a cumplicidade crítica pela integração total ao poder. Para
além de inventário e classificação
da fauna, os dois falam a mesma e
cifrada língua, avaliam o teatro
político e humano em uníssono,
ainda que discordem dos caminhos a tomar, redimensionando a
arena brasileira em escala global.
Dissolvem as motivações aparentemente autônomas dos atores locais, convertendo-os em
marionetes dos interesses das
grandes potências, a tal ponto que
acaba por contaminar a intriga do
romance de um alto teor de paranóia histórica.
Se o retrato da elite é eficaz, casando observação e síntese precisas a uma estilização bem realizada, o desfecho recorre a expedientes de um Graham Greene ou
John Le Carré exacerbados.
A voz em primeira pessoa de
Mann imprime à história um ritmo alucinado, vertiginoso. Em
"Cabeça de Negro", sequência em
que o narrador salta das franjas
do poder para uma convivência
mais íntima, é a sua consciência,
editorial, que prevalece o tempo
todo. Nesta mediação, mais do
que nunca, está vivo o Francis jornalista do estilo bárbaro, alusivo e
entrecortado, esboçando sem ter
tempo de concluir, desbravador,
mas com nova e legítima função
gerada no romance.
Já se falou sobre a mescla de
confissão e invenção que permeiam a obra ficcional de Francis.
De fato, seus leitores do "Diário
da Corte" e d'"O Afeto que se Encerra" (volume de memórias) reconhecem em Hesse e Mann parte de sua experiência pessoal.
Os dois "Cabeça", por exemplo,
poderiam ser lidos como um guia,
autorizado e comentado aos leigos, do que se passa intramuros
nos grandes jornais brasileiros,
por um dos protagonistas da modernização da imprensa na segunda metade do século passado.
Mas são mais. Apesar das falhas
estruturais, são literatura ambiciosa de um estilista inconfundível, romance de idéias de primeira ordem e patrimônio de todos
aqueles que, alternadamente de
acordo ou do contra, aprenderam
a discutir com Francis.
Fábio de Souza Andrade é professor
de teoria literária na USP, autor de "Samuel Beckett: O Silêncio Possível" (Ateliê) e "O Engenheiro Noturno: A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp)
CABEÇA DE PAPEL. Autor: Paulo
Francis. Editora: Francis. Quanto: R$ 29
(240 págs.).
CABEÇA DE NEGRO. Autor: Paulo
Francis. Editora: Francis. Quanto: R$ 32
(280 págs.).
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