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São Paulo, sábado, 01 de fevereiro de 2003

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LITERATURA

CRÍTICA

Obra de Paulo Francis escritor não se separa fácil da imagem do jornalista

"Cabeças" são literatura ambiciosa de estilista único

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando morreu, Paulo Francis (1930-97) deixou-nos apenas duas das três "cabeças" que planejava para compor sua figura de romancista: "Cabeça de Papel", de 1978, e "Cabeça de Negro", de 1979. "Cabeça", sem mais, um ataque cardíaco abateu antes de pronta, há seis anos, em Nova York.
Janusiano, no lugar do Cérbero pretendido, o escritor continua difícil de separar da presença imperiosa do jornalista peso-pesado. A mesma que afiança, em efígie, a reedição dos romances pela editora recém-criada que leva o seu nome.
É sempre bom ter um amigo inteligente e informado. Paulo Francis, democraticamente, prestou-se ao papel, iniciático, para todos os que mastigaram letra de imprensa no país nos últimos 50 anos.
Tempestuoso, opinião rápida e afiada sobre tudo e todos, Francis era um dos poucos fenômenos atmosféricos interessantes na crítica cultural brasileira, território afeito às calmarias prolongadas, à conciliação e troca de afagos, ao palpite furado passando por juízo fundado.
Combinando anatomia de costumes com espionagem, mundinho da zona sul carioca com jogo político imperialista, os dois romances fazem o balanço das alternativas políticas do intelectual de esquerda no Brasil, quando a perspectiva da revolução havia sido engolida pela "gloriosa" e mesmo esta chegava a seus estertores.
Pelos olhos de Hugo Mann, crítico de cinema desiludido com a militância trotskista, refugiado numa independência de pensamento feroz, penetramos nas festas e farras da elite. Livre dos freios da respeitabilidade pública, o poder dança desfigurado e grotesco (como o ministro morbidamente obeso, sodomizado ao som de "Tico-tico no Fubá"), cinicamente desfrutando e calando a má consciência com paraísos artificiais (sexo, álcool e drogas).
Mesmo que lá fora o sol brilhe, republicano, banhando a cidade em cordialidade carioca, trata-se de uma descida aos infernos.
Em "Cabeça de Papel", Paulo Hesse, jornalista, seu gêmeo intelectual, faz a contraparte adesista, tendo, para consumo público, trocado a cumplicidade crítica pela integração total ao poder. Para além de inventário e classificação da fauna, os dois falam a mesma e cifrada língua, avaliam o teatro político e humano em uníssono, ainda que discordem dos caminhos a tomar, redimensionando a arena brasileira em escala global.
Dissolvem as motivações aparentemente autônomas dos atores locais, convertendo-os em marionetes dos interesses das grandes potências, a tal ponto que acaba por contaminar a intriga do romance de um alto teor de paranóia histórica.
Se o retrato da elite é eficaz, casando observação e síntese precisas a uma estilização bem realizada, o desfecho recorre a expedientes de um Graham Greene ou John Le Carré exacerbados.
A voz em primeira pessoa de Mann imprime à história um ritmo alucinado, vertiginoso. Em "Cabeça de Negro", sequência em que o narrador salta das franjas do poder para uma convivência mais íntima, é a sua consciência, editorial, que prevalece o tempo todo. Nesta mediação, mais do que nunca, está vivo o Francis jornalista do estilo bárbaro, alusivo e entrecortado, esboçando sem ter tempo de concluir, desbravador, mas com nova e legítima função gerada no romance.
Já se falou sobre a mescla de confissão e invenção que permeiam a obra ficcional de Francis. De fato, seus leitores do "Diário da Corte" e d'"O Afeto que se Encerra" (volume de memórias) reconhecem em Hesse e Mann parte de sua experiência pessoal.
Os dois "Cabeça", por exemplo, poderiam ser lidos como um guia, autorizado e comentado aos leigos, do que se passa intramuros nos grandes jornais brasileiros, por um dos protagonistas da modernização da imprensa na segunda metade do século passado.
Mas são mais. Apesar das falhas estruturais, são literatura ambiciosa de um estilista inconfundível, romance de idéias de primeira ordem e patrimônio de todos aqueles que, alternadamente de acordo ou do contra, aprenderam a discutir com Francis.


Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na USP, autor de "Samuel Beckett: O Silêncio Possível" (Ateliê) e "O Engenheiro Noturno: A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp)

CABEÇA DE PAPEL. Autor: Paulo Francis. Editora: Francis. Quanto: R$ 29 (240 págs.).

CABEÇA DE NEGRO. Autor: Paulo Francis. Editora: Francis. Quanto: R$ 32 (280 págs.).


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