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MARCELO COELHO
Dilemas éticos em tempos de calor
Demoraram bastante, pelo que me lembro, a instalar
aparelhos de ar-condicionado na
Redação da Folha. Sou do tempo
em que as paredes do jornal eram
ainda cobertas de pastilhas coloridas e em que a fumaça dos cigarros e a barulhada das máquinas de escrever contribuíam, junto da agitação normal do jornalismo, para aumentar o calor do
ambiente.
Era também o tempo em que se
reclamava, com razão, das medidas governamentais adotadas
sem consulta pelos tecnocratas refestelados -assim rezava o clichê- "nos gabinetes refrigerados
de Brasília".
O clichê ainda se emprega, mas
sem tanta propriedade. A menos
que o articulista plante soja no
cerrado, organize acampamentos
do MST em suas horas vagas, ou
ainda padeça de grave rinite,
também ele escreve, hoje em dia,
de um ambiente refrigerado, tão
distante do "mundo real" quanto
os governantes que critica.
Só que as autoridades inovam
sempre, o que não é o caso dos articulistas, presos que estamos a
clichês e gabinetes. Recentemente,
o ministro Saraiva Felipe, da Saúde, saiu do seu, em Brasília, para
uma solenidade num hospital público do Rio de Janeiro. Maomé
não foi à montanha, e sim à planície, onde o calor de 37,5 C não
facilitava a vida de quem estava à
espera do atendimento de urgência num saguão lotado.
Mas a montanha foi a Maomé,
ou pelo menos o clima da montanha: alugaram-se dez aparelhos
de ar-condicionado para refrescar, durante quatro horas, a visita do ministro ao auditório do
hospital Souza Aguiar. É o que
noticia a Folha de 20 de janeiro.
O secretário municipal da Saúde,
Ronaldo Cezar Coelho, assim explicou a iniciativa: "Não faz sentido receber o ministro da Saúde
aqui e não ter ar-condicionado.
Ele está repassando R$ 45 milhões
para nós. Isso é implicância de
quinta categoria e não tem nada
a ver com saúde. É uma bobagem.
Não sei quanto custou e não vou
discutir o preço de aluguel de ar-condicionado".
Depois da solenidade, diz a reportagem, o equipamento foi retirado. Enquanto isso, operações
eram adiadas no centro cirúrgico,
dada a pane no ar-condicionado
central daquela casa de saúde.
Tudo estará em ordem, promete-se, aí pelo dia 8 de fevereiro.
Não preciso insistir no absurdo
desse caso. Mais interessante, eu
acho, é tentar entender como se
chega a tal situação. Tudo seria
muito simples se este ou aquele
político -Saraiva Felipe, Ronaldo Cezar Coelho- tivesse decidido deixar doentes cozinhando no
pronto-socorro. Até onde se pode
intuir da reportagem, as coisas
funcionam de outro modo.
O sistema de ar-condicionado
do hospital estava passando por
uma reforma. Uma empresa foi
contratada para fazer a obra. Esta empresa, por sua vez, recorreu
aos serviços de outra, que instalou
os aparelhos no auditório. Quem
pagou pela gentileza? Quem decidiu? Ninguém podia informar,
diz a reportagem.
Certamente, nem o ministro
nem o secretário sabiam dos aparelhos alugados; talvez soubessem
do calor na fila de espera; mas tinham, é claro, outras coisas que
fazer.
Não os culpo. O problema, justamente, é que nunca existem
culpados. No mundo moderno,
como nos tempos do absolutismo,
muitos luxos cercam o cotidiano
de quem tem poder: palácios,
mordomos, refeições caríssimas.
A diferença é que, no Antigo Regime, essa situação de conforto físico se acompanhava de um imenso arbítrio pessoal. Não por acaso,
se diz que os príncipes agiam "a
seu bel-prazer".
Hoje em dia, agrados, favores,
"mimos", como se diz, surgem por
geração espontânea, entre uma e
outra coluna de uma planilha de
custos. A lógica administrativa
-o mundo dos pró-labores, das
verbas de representação, dos
"fringe-benefits", que sei eu-
funciona por si mesma, oferecendo aos privilegiados um luxo suplementar e supremo: o de não
saberem de nada.
Um ex-governador, um ex-presidente, vê-se um belo dia instalado num apartamento cinematográfico, recebe cachês milionários
para palestras, torna-se diretor de
um instituto qualquer, e teria
muito trabalho se quisesse investigar as origens de sua própria situação material. Imagino que
exista gente muito bem paga apenas para lhe esconder os detalhes
aborrecidos a esse respeito.
Reportagem de Luiz Maklouf
Carvalho, no "Estado" deste domingo, transcreve trechos de um
depoimento de Lula, na comissão
de ética do PT, em 1997, quando
surgiram denúncias em torno de
sua amizade com Roberto Teixeira. Em 1989, diz Lula, "eu estava
no Ceará quando o comando da
minha campanha achou que a
minha casa no bairro Assunção
era uma casa que não oferecia segurança (...) eu sempre fui contra
mudar daquela casa porque
aquela casa, cada tijolinho que
tem lá, eu tenho participação de
ter colocado. Mas aí o pessoal insistiu, insistiu (...) Eu sei que mudaram sem eu saber. Cheguei de
uma viagem. Quando eu desci no
aeroporto, eu fiquei sabendo que
eu não estava mais na casa em
que eu morava".
Acredito que a coisa funcione
desse jeito mesmo. Podemos nos
considerar perfeitamente éticos,
sem ter feito nada de errado, enquanto "o pessoal" trata de tudo.
Hannah Arendt dizia, a respeito
do nazismo, que, numa situação
daquelas, manter a mera decência humana já exigia qualidades
excepcionais de caráter.
Não chegamos a tanto; acredito, contudo, que para alguém ser
ético, numa sociedade como a
nossa, sempre é preciso nadar
contra a corrente. Talvez não requeira muito heroísmo mandar
desligar o ar-condicionado, mas
você ficaria com a fama de ser um
chato daqueles. E, num país em
que os hospitais públicos são o
que são, quem não tem convênio
particular que atire a primeira
pedra.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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