São Paulo, quarta-feira, 01 de fevereiro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO

Dilemas éticos em tempos de calor

Demoraram bastante, pelo que me lembro, a instalar aparelhos de ar-condicionado na Redação da Folha. Sou do tempo em que as paredes do jornal eram ainda cobertas de pastilhas coloridas e em que a fumaça dos cigarros e a barulhada das máquinas de escrever contribuíam, junto da agitação normal do jornalismo, para aumentar o calor do ambiente.
Era também o tempo em que se reclamava, com razão, das medidas governamentais adotadas sem consulta pelos tecnocratas refestelados -assim rezava o clichê- "nos gabinetes refrigerados de Brasília".
O clichê ainda se emprega, mas sem tanta propriedade. A menos que o articulista plante soja no cerrado, organize acampamentos do MST em suas horas vagas, ou ainda padeça de grave rinite, também ele escreve, hoje em dia, de um ambiente refrigerado, tão distante do "mundo real" quanto os governantes que critica.
Só que as autoridades inovam sempre, o que não é o caso dos articulistas, presos que estamos a clichês e gabinetes. Recentemente, o ministro Saraiva Felipe, da Saúde, saiu do seu, em Brasília, para uma solenidade num hospital público do Rio de Janeiro. Maomé não foi à montanha, e sim à planície, onde o calor de 37,5 C não facilitava a vida de quem estava à espera do atendimento de urgência num saguão lotado.
Mas a montanha foi a Maomé, ou pelo menos o clima da montanha: alugaram-se dez aparelhos de ar-condicionado para refrescar, durante quatro horas, a visita do ministro ao auditório do hospital Souza Aguiar. É o que noticia a Folha de 20 de janeiro. O secretário municipal da Saúde, Ronaldo Cezar Coelho, assim explicou a iniciativa: "Não faz sentido receber o ministro da Saúde aqui e não ter ar-condicionado. Ele está repassando R$ 45 milhões para nós. Isso é implicância de quinta categoria e não tem nada a ver com saúde. É uma bobagem. Não sei quanto custou e não vou discutir o preço de aluguel de ar-condicionado".
Depois da solenidade, diz a reportagem, o equipamento foi retirado. Enquanto isso, operações eram adiadas no centro cirúrgico, dada a pane no ar-condicionado central daquela casa de saúde. Tudo estará em ordem, promete-se, aí pelo dia 8 de fevereiro.
Não preciso insistir no absurdo desse caso. Mais interessante, eu acho, é tentar entender como se chega a tal situação. Tudo seria muito simples se este ou aquele político -Saraiva Felipe, Ronaldo Cezar Coelho- tivesse decidido deixar doentes cozinhando no pronto-socorro. Até onde se pode intuir da reportagem, as coisas funcionam de outro modo.
O sistema de ar-condicionado do hospital estava passando por uma reforma. Uma empresa foi contratada para fazer a obra. Esta empresa, por sua vez, recorreu aos serviços de outra, que instalou os aparelhos no auditório. Quem pagou pela gentileza? Quem decidiu? Ninguém podia informar, diz a reportagem.
Certamente, nem o ministro nem o secretário sabiam dos aparelhos alugados; talvez soubessem do calor na fila de espera; mas tinham, é claro, outras coisas que fazer.
Não os culpo. O problema, justamente, é que nunca existem culpados. No mundo moderno, como nos tempos do absolutismo, muitos luxos cercam o cotidiano de quem tem poder: palácios, mordomos, refeições caríssimas. A diferença é que, no Antigo Regime, essa situação de conforto físico se acompanhava de um imenso arbítrio pessoal. Não por acaso, se diz que os príncipes agiam "a seu bel-prazer".
Hoje em dia, agrados, favores, "mimos", como se diz, surgem por geração espontânea, entre uma e outra coluna de uma planilha de custos. A lógica administrativa -o mundo dos pró-labores, das verbas de representação, dos "fringe-benefits", que sei eu- funciona por si mesma, oferecendo aos privilegiados um luxo suplementar e supremo: o de não saberem de nada.
Um ex-governador, um ex-presidente, vê-se um belo dia instalado num apartamento cinematográfico, recebe cachês milionários para palestras, torna-se diretor de um instituto qualquer, e teria muito trabalho se quisesse investigar as origens de sua própria situação material. Imagino que exista gente muito bem paga apenas para lhe esconder os detalhes aborrecidos a esse respeito.
Reportagem de Luiz Maklouf Carvalho, no "Estado" deste domingo, transcreve trechos de um depoimento de Lula, na comissão de ética do PT, em 1997, quando surgiram denúncias em torno de sua amizade com Roberto Teixeira. Em 1989, diz Lula, "eu estava no Ceará quando o comando da minha campanha achou que a minha casa no bairro Assunção era uma casa que não oferecia segurança (...) eu sempre fui contra mudar daquela casa porque aquela casa, cada tijolinho que tem lá, eu tenho participação de ter colocado. Mas aí o pessoal insistiu, insistiu (...) Eu sei que mudaram sem eu saber. Cheguei de uma viagem. Quando eu desci no aeroporto, eu fiquei sabendo que eu não estava mais na casa em que eu morava".
Acredito que a coisa funcione desse jeito mesmo. Podemos nos considerar perfeitamente éticos, sem ter feito nada de errado, enquanto "o pessoal" trata de tudo. Hannah Arendt dizia, a respeito do nazismo, que, numa situação daquelas, manter a mera decência humana já exigia qualidades excepcionais de caráter.
Não chegamos a tanto; acredito, contudo, que para alguém ser ético, numa sociedade como a nossa, sempre é preciso nadar contra a corrente. Talvez não requeira muito heroísmo mandar desligar o ar-condicionado, mas você ficaria com a fama de ser um chato daqueles. E, num país em que os hospitais públicos são o que são, quem não tem convênio particular que atire a primeira pedra.


@ - coelhofsp@uol.com.br

Texto Anterior: Música: Silvério Pessoa moderniza o forró
Próximo Texto: Olhares digitais
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.