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BERNARDO CARVALHO
Está rindo do quê?
"O Homem que Ri" (1928, recém-lançado em DVD)
é um melodrama do cinema mudo, baseado no romance homônimo de Victor Hugo e dirigido por Paul Leni, célebre cenógrafo do
expressionismo alemão. É um filme medíocre em vários sentidos e
estranho em outros tantos. O protagonista, interpretado por Conrad Veidt ("O Gabinete do Doutor Caligari"), teria inspirado o
Curinga, um dos arquiinimigos
do Batman.
Gwynplaine, o homem que ri,
não sabe que é o único herdeiro
de um duque que caiu em desgraça e foi condenado à morte pelo
rei da Inglaterra. Por ordem do
rei, o filho do duque foi entregue
ainda pequeno aos ciganos e
transformado num monstro pelas
mãos de um cirurgião plástico -
destino reservado às crianças roubadas que depois eram apresentadas como atrações em feiras e
circos. O cirurgião a serviço dos
ciganos rasga um sorriso permanente na boca do menino, condenado a rir para sempre, mesmo
diante da pior tragédia.
Logo depois da morte do duque,
o rei expulsa os ciganos do país. E
o pequeno monstro é abandonado sozinho, na última hora, com
seu sorriso macabro nos lábios,
quando o navio está zarpando do
porto. Entregue à própria sorte,
ele salva uma recém-nascida cega
dos braços da mãe, uma mendiga
que morreu de frio nas ruas. Os
dois são resgatados por um filósofo e dramaturgo ambulante.
Criados pelo velho como irmãos,
vão se tornar as atrações de um
espetáculo mambembe apresentado de cidade em cidade e de feira em feira, entre outros fenômenos da natureza, como vacas de
cinco patas, engole-espadas e homens à prova de fogo.
Em "O Gabinete do Doutor Caligari", Veidt também interpretava um monstro, um sonâmbulo
manipulado como atração itinerante por um velho malévolo e
enigmático. Em "O Homem que
Ri", não há enigma nem maldade
na relação entre o monstro e o
mestre. Tanto o protagonista como o velho filósofo são de uma
bondade a toda prova. Formam
uma família. A estranheza e a
perturbação vêm de outro lugar.
Da metáfora do sorriso permanente.
O homem que ri vive com uma
echarpe enrolada sobre a boca
para esconder a monstruosidade.
A simples visão do seu riso contamina quem o vê. Basta vê-lo para
começar a rir. Ninguém resiste. A
única mulher com quem ele se
sente à vontade é a cega com
quem foi criado. Os dois se amam.
O amor é cego, mas a peculiaridade dessa relação dá um outro sentido ao provérbio: ele nunca saberá se ela realmente o ama, se continuaria a amá-lo (se também
não seria contaminada pelo riso,
como os outros) se pudesse vê-lo.
Embora para ela isso não seja um
problema, ao contrário: "Deus fechou os meus olhos para que eu
pudesse ver somente o verdadeiro
Gwynplaine".
A tensão e a impossibilidade entre amor e monstruosidade já estavam presentes em "Notre-Dame de Paris", do mesmo Victor
Hugo. Quasimodo, o corcunda,
faz tudo pela mulher que não pode amá-lo como ele a ama, simplesmente porque não o enxerga
como alguém a ser amado mas
como alguém por quem se deve
ter compaixão. A diferença em "O
Homem que Ri" é que o amor
aqui é correspondido, o monstro é
amado pela mulher e só não pode
corresponder por pudor, porque
também a ama e não quer lhe impor a sua monstruosidade. Precisa antes ter certeza de que ela o
amaria mesmo se pudesse vê-lo.
Mas essa é, em princípio, uma
certeza impossível.
Quando uma duquesa decide
assistir ao espetáculo do homem
que ri e, ao contrário do resto do
público, não ri ("Sou aquela que
não riu. Será de pena ou de
amor?", ela escreve ao monstro),
ele conclui: "Uma mulher viu o
meu sorriso e me ama. Isso quer
dizer que tenho o direito de me
casar com Dea (a cega)".
A conclusão, porém, não vai se
sustentar por muito tempo. Atendendo ao chamado da duquesa,
ele comparece aos seus aposentos
no meio da noite. E lá, ao revê-lo,
talvez por ter sido atraída por algum tipo de perversão e não pelo
"verdadeiro amor" (está aí o elemento moralizante do melodrama), ela não agüenta e acaba rindo também. Ele sai horrorizado.
O mais estranho é que o homem
que ri não tem graça nenhuma.
Então, por que riem dele? Por que
é impossível não rir diante dele? A
incoerência dessa contaminação
é análoga à do próprio rosto do
protagonista, que ri enquanto
chora, a ponto de a câmera ter
que evitar sua boca quando quer
mostrar o desespero do herói.
Quando riem dele, os outros ficam iguais ao homem que ri. É
um círculo vicioso, a repetição do
mesmo, como a reprodução descontrolada de um vírus de computador. É a compulsão de quem
se iguala, inconscientemente,
àquilo de que pretende se diferenciar. "O Homem que Ri" é, no
fundo, um filme de horror.
Por tratá-lo como vítima, o melodrama dissimula na figura do
protagonista o potencial desestabilizador que será desenvolvido
como arma do mal pelo personagem do Curinga, em "Batman".
Os que riem do homem que ri são
imediatamente transformados
em clones dele. É como se ele fosse
uma matriz enlouquecida, um
câncer. O riso, que em princípio
marcaria a distância, a diferença
entre os que riem e o objeto do seu
riso, vira mimetismo. São muitos
os desdobramentos dessa metáfora, mas o mais terrível sugere um
mundo de espelhos, um estado de
coisas assustador em que, para
ver diferenças, é preciso ser cego.
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