São Paulo, terça-feira, 01 de março de 2005

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BERNARDO CARVALHO

Está rindo do quê?

"O Homem que Ri" (1928, recém-lançado em DVD) é um melodrama do cinema mudo, baseado no romance homônimo de Victor Hugo e dirigido por Paul Leni, célebre cenógrafo do expressionismo alemão. É um filme medíocre em vários sentidos e estranho em outros tantos. O protagonista, interpretado por Conrad Veidt ("O Gabinete do Doutor Caligari"), teria inspirado o Curinga, um dos arquiinimigos do Batman.
Gwynplaine, o homem que ri, não sabe que é o único herdeiro de um duque que caiu em desgraça e foi condenado à morte pelo rei da Inglaterra. Por ordem do rei, o filho do duque foi entregue ainda pequeno aos ciganos e transformado num monstro pelas mãos de um cirurgião plástico - destino reservado às crianças roubadas que depois eram apresentadas como atrações em feiras e circos. O cirurgião a serviço dos ciganos rasga um sorriso permanente na boca do menino, condenado a rir para sempre, mesmo diante da pior tragédia.
Logo depois da morte do duque, o rei expulsa os ciganos do país. E o pequeno monstro é abandonado sozinho, na última hora, com seu sorriso macabro nos lábios, quando o navio está zarpando do porto. Entregue à própria sorte, ele salva uma recém-nascida cega dos braços da mãe, uma mendiga que morreu de frio nas ruas. Os dois são resgatados por um filósofo e dramaturgo ambulante. Criados pelo velho como irmãos, vão se tornar as atrações de um espetáculo mambembe apresentado de cidade em cidade e de feira em feira, entre outros fenômenos da natureza, como vacas de cinco patas, engole-espadas e homens à prova de fogo.
Em "O Gabinete do Doutor Caligari", Veidt também interpretava um monstro, um sonâmbulo manipulado como atração itinerante por um velho malévolo e enigmático. Em "O Homem que Ri", não há enigma nem maldade na relação entre o monstro e o mestre. Tanto o protagonista como o velho filósofo são de uma bondade a toda prova. Formam uma família. A estranheza e a perturbação vêm de outro lugar. Da metáfora do sorriso permanente.
O homem que ri vive com uma echarpe enrolada sobre a boca para esconder a monstruosidade. A simples visão do seu riso contamina quem o vê. Basta vê-lo para começar a rir. Ninguém resiste. A única mulher com quem ele se sente à vontade é a cega com quem foi criado. Os dois se amam. O amor é cego, mas a peculiaridade dessa relação dá um outro sentido ao provérbio: ele nunca saberá se ela realmente o ama, se continuaria a amá-lo (se também não seria contaminada pelo riso, como os outros) se pudesse vê-lo. Embora para ela isso não seja um problema, ao contrário: "Deus fechou os meus olhos para que eu pudesse ver somente o verdadeiro Gwynplaine".
A tensão e a impossibilidade entre amor e monstruosidade já estavam presentes em "Notre-Dame de Paris", do mesmo Victor Hugo. Quasimodo, o corcunda, faz tudo pela mulher que não pode amá-lo como ele a ama, simplesmente porque não o enxerga como alguém a ser amado mas como alguém por quem se deve ter compaixão. A diferença em "O Homem que Ri" é que o amor aqui é correspondido, o monstro é amado pela mulher e só não pode corresponder por pudor, porque também a ama e não quer lhe impor a sua monstruosidade. Precisa antes ter certeza de que ela o amaria mesmo se pudesse vê-lo. Mas essa é, em princípio, uma certeza impossível.
Quando uma duquesa decide assistir ao espetáculo do homem que ri e, ao contrário do resto do público, não ri ("Sou aquela que não riu. Será de pena ou de amor?", ela escreve ao monstro), ele conclui: "Uma mulher viu o meu sorriso e me ama. Isso quer dizer que tenho o direito de me casar com Dea (a cega)".
A conclusão, porém, não vai se sustentar por muito tempo. Atendendo ao chamado da duquesa, ele comparece aos seus aposentos no meio da noite. E lá, ao revê-lo, talvez por ter sido atraída por algum tipo de perversão e não pelo "verdadeiro amor" (está aí o elemento moralizante do melodrama), ela não agüenta e acaba rindo também. Ele sai horrorizado.
O mais estranho é que o homem que ri não tem graça nenhuma. Então, por que riem dele? Por que é impossível não rir diante dele? A incoerência dessa contaminação é análoga à do próprio rosto do protagonista, que ri enquanto chora, a ponto de a câmera ter que evitar sua boca quando quer mostrar o desespero do herói.
Quando riem dele, os outros ficam iguais ao homem que ri. É um círculo vicioso, a repetição do mesmo, como a reprodução descontrolada de um vírus de computador. É a compulsão de quem se iguala, inconscientemente, àquilo de que pretende se diferenciar. "O Homem que Ri" é, no fundo, um filme de horror.
Por tratá-lo como vítima, o melodrama dissimula na figura do protagonista o potencial desestabilizador que será desenvolvido como arma do mal pelo personagem do Curinga, em "Batman". Os que riem do homem que ri são imediatamente transformados em clones dele. É como se ele fosse uma matriz enlouquecida, um câncer. O riso, que em princípio marcaria a distância, a diferença entre os que riem e o objeto do seu riso, vira mimetismo. São muitos os desdobramentos dessa metáfora, mas o mais terrível sugere um mundo de espelhos, um estado de coisas assustador em que, para ver diferenças, é preciso ser cego.


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