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CONTARDO CALLIGARIS
"Pecados Íntimos"
O filme, tocante e
verdadeiro, é sobre
como nosso desejo
encalha e se solta
"PECADOS ÍNTIMOS", de
Todd Field, estreou no dia
9 de fevereiro. Parecia ser
mais um filme sobre a vida nos subúrbios americanos de classe média,
tipo "Beleza Americana" (vencedor
do Oscar em 2000), e fiquei com
preguiça. Sempre acho um pouco fácil satirizar uma maneira de viver,
como se o jeito da gente fosse o certo: "Aponto o vazio na vida dos outros para me convencer de que a minha é autêntica e plena".
Vários leitores me escreveram estranhando que não comentasse o filme. Graças a eles, assisti, enfim, a
"Pecados Íntimos", que NÃO é um
filme sobre a vida nos subúrbios
americanos (a não ser que você considere que "Hamlet" é uma peça sobre a vida na corte da Dinamarca durante a Idade Média).
"Pecados Íntimos" é um filme tocante e verdadeiro sobre os caminhos forçados de nosso desejo e sobre como ele encalha (quase sempre) e se solta (aos trancos).
Quando ensinava "Cultural Studies" na New School, começava dizendo a meus estudantes que eles
eram livres para tirar todas as notas
A que quisessem, mas, para entender a subjetividade moderna, eles
teriam que passar por três letras B:
Brummel, Byron e Bovary. Não era
só uma piada de professor: as três figuras em questão, afinal, falam todas de nossa impossibilidade de
conseguir, na vida, a nota máxima.
Um B já é de bom tamanho.
Brummel (o primeiro dandy, no
fim do século 18) lembra que a nobreza não é efeito do berço em que a
gente nasce; ela é fruto da "elegância" (não tanto das maneiras e da
roupa, mas do espírito). O hábito, na
modernidade, faz o monge, e somos
livres para escolhê-lo. Mas essa liberdade tem um custo: o desconforto de apenas parecer o que somos e,
claro, a aflição de parecer o que não
somos ou não queremos ser. O hábito faz e aprisiona o monge.
Byron (o poeta romântico) lembra
que, na vida moderna, o que importa
é a intensidade e a variedade de experiências. A fome de viver e o anseio de aventuras levam alguns a lutar pela independência da Grécia, a
pular de skate quando mal sabem
andar ou a perder-se nas sarjetas do
mundo. E nos levam a sonhar com o
que não ousamos empreender.
Emma Bovary (a heroína do romance de Flaubert) lembra que o
amor é o grande operador moderno
da mudança. Descobrimos que podíamos inventar nossa vida quando
começamos a casar por amor (e não
para preservar a casta, a família e o
patrimônio). Portanto, esperamos
do amor que ele nos transforme e
nos leve para uma "outra" vida (e toda vida tem uma "outra" vida com a
qual sonhar).
Numa cena de "Pecados Íntimos",
"Madame Bovary" é comentado por
um grupo de mulheres. Elas descobrem (a contragosto) que são todas,
de um jeito ou de outro, Emma Bovary: inconformadas com sua vida e
desejosas de um amor que as salve.
Mas "Pecados Íntimos" é mais
que uma adaptação de "Madame
Bovary": é um pequeno "tratado" da
subjetividade moderna. Até porque,
justamente, Emma Bovary sentia
que ela era muito mais do que parecia pela "rotina" de sua vida. E seus
sonhos de amor eram sonhos de experiência e aventura. Ou seja, os três
"B" estão sempre juntos, dentro da
gente.
Além disso, é difícil sair do cinema
sem se perguntar por qual mistério
somos condescendentes com nossas impulsões (o pedófilo e a protagonista não são os únicos que não
sabem resistir às tentações) e, ao
mesmo tempo, inertes quando se
trata de mudar de vida. O desejo só
consegue se expressar por sobressaltos. É como se, contra o nosso desejo, tivéssemos erigido um dique
inútil: a água irrompe, forte, pelas
pequenas falhas, mas sua massa não
se transforma em energia para inventar a vida.
A incapacidade de mudar, aliás, é o
grande tema do filme. Há a mãe do
pedófilo, que espera que o filho se
torne "normal", mas, olhe só, coleciona estatuetas de meninos. Há a
mulher que não quer perder o marido, mas enfia o filho no meio da cama e vigia a vida do esposo como
uma mãe. Há a mulher que morre de
tédio e transa com o marido toda
terça às 19h30, embora sonhe em
conseguir o telefone de um bonitão.
Há o homem que cansou de ser babá
do filho, mas, quando se trata de estudar para o exame da Ordem, passa
as noites à toa.
O título original do filme é "Little
Children" (criancinhas). Em matéria de desejo, somos todos criancinhas, incapazes de encontrar a coragem de fazer o que desejamos, mas
sempre (e apenas) tentados por potes de geléia.
ccalligari@uol.com.br
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