São Paulo, sábado, 01 de março de 2008

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Livro

Autor do Conjunto Nacional ganha tributo aos 79 anos

David Libeskind conta à Folha como, aos 26, convenceu um empresário "doido" a construir um marco de São Paulo

Intervenções na fachada, ornamentos que vieram com o tempo e o relógio irritam o arquiteto: "É horrível, é desproporcional"

Danilo Verpa/Folha Imagem
Rampa interna do Conjunto Nacional, que começou a ser projetado em 1954 por David Libeskind

SILAS MARTÍ
DA REPORTAGEM LOCAL

Diante dos olhos do empresário, David Libeskind desenhou numa folha em branco, há 54 anos, as primeiras linhas de um marco do "skyline" paulistano. "Minha sorte foi que ele era doido", diz o arquiteto sobre o homem que lhe encomendou o Conjunto Nacional.
Então com 26 anos, recém-formado arquiteto em Belo Horizonte, Libeskind acabara de se instalar numa pensão na rua Bento Freitas, centro de São Paulo. Levou seus desenhos e um currículo de poucas linhas para encarar o homem disposto a deslocar, do vale do Anhangabaú para a avenida Paulista, o centro comercial da cidade.
Hoje aos 79 -os últimos 15 anos enfrentando o mal de Parkinson-, Libeskind é tema de um livro que leva seu nome, recém-lançado pela arquiteta Luciana Tombi Brasil.
Interrompido pelos tremores da doença, o arquiteto conversou com a reportagem da Folha em sua casa no Pacaembu -nas paredes do escritório, quadros que ele mesmo pintou e expôs na Bienal de São Paulo e desenhos de Flavio de Carvalho, ecos do momento em que a capital paulista se tornou uma metrópole.
Ele lembra que, naquela primeira reunião, o empresário José Tijurs ensaiou encerrar a conversa logo de cara, mas ele insistiu. "Eu disse que estava sem fazer nada e queria mostrar minhas idéias. Ele me deu um papel em branco e disse o que queria", lembra.
No traço de Libeskind, o Conjunto Nacional ocuparia todo um quarteirão do endereço mais nobre da cidade, juntando quatro ruas sob um teto coroado por uma cúpula metálica -a primeira do tipo construída no Brasil- e três torres contíguas de apartamentos.
"Dei um prolongamento da rua Augusta para dentro do Conjunto Nacional, era a rua mais chique de São Paulo. O Tijurs pegou a planta, consultou os banqueiros e disse que ia dar certo. Se fosse hoje, iam mandar diminuir o tamanho, seria outra história", conta.
Impressionado com as dimensões da galeria, Tijurs optou por montar lojas improvisadas no espaço que Libeskind pretendia deixar vazio. O incêndio que atingiu o Conjunto Nacional em 1978 deu fim a essa solução. "O fogo salvou o Conjunto Nacional. Não matou ninguém, mas limpou tudo."
Ou quase tudo. As intervenções na fachada, ornamentos que vieram com o tempo e o relógio na cobertura ainda irritam o arquiteto. Para a sua decepção, a Lei Cidade Limpa ainda não deu conta de limpar o terraço. "É horrível, esse relógio é desproporcional ao prédio", esbraveja.
Mas a estrutura principal continua a mesma. O piso da calçada externa reproduzido no lado de dentro marcou a fusão do espaço público com o privado e acentuou a vocação multifuncional do projeto de Libeskind, em sintonia com a época. Rino Levi e Vilanova Artigas, embora opostos no plano político, pregavam que a arquitetura precedia o edifício isolado, que os prédios deveriam se integrar ao resto da cidade.

Artigas e Guignard
A pensão que abrigou Libeskind ficava na mesma rua do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), que reservava o porão para encontros de arquitetos e artistas, o "Clubinho". Lá ele conheceu Flavio de Carvalho e Artigas -que "pregava política e arquitetura" aos comunistas, lembra. "Ele não admitia que ninguém tomasse Coca-Cola."
A pedido do IAB, Libeskind fez a primeira exposição de pinturas de Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) em São Paulo, que julgava então o maior pintor do Brasil. "Eu fui até Belo Horizonte e voltei com 30 telas debaixo do braço, sem seguro, sem nada", diz, sorrindo.
Nome importante da ruptura com o figurativismo na arte brasileira e mentor dos primeiros passos de Libeskind, Guignard ficou irritado ao saber que o aluno seria arquiteto.
Culpa de Oscar Niemeyer quando projetava a Pampulha, em Belo Horizonte, e passava dias longe do escritório, deixando Libeskind sozinho com seus desenhos. "A Pampulha me fez estudar arquitetura."
Mas Libeskind nunca abandonou a arte, que via como exercício para entender o mundo. Nisso lembra o dia em que reencontrou Guignard após dias de sumiço. O pintor estava nu, enfiado até a cintura num aquário com plantas e pedras, para "pintar o fundo do mar".

Arte cinética
Quando veio a São Paulo, Libeskind parcelou em três vezes um quadro de Danilo Di Prete. A galeria fechou quando ainda devia metade do dinheiro, e ele mandou procurar o pintor para acertar as contas.
"Eu estendi a mão, ele se ajoelhou e perguntou o que podia fazer por mim. Eu disse que só gostaria de vê-lo pintar", disse Libeskind, que está restaurando um quadro do amigo - a tela rasgou quando despencou da parede da sala sobre a lança de um guerreiro esculpido por Francisco Stockinger.
Di Prete trabalhava para Ciccillo Matarazzo e ajudou a criar a Bienal de São Paulo. Chegou a ser premiado na primeira edição e apresentou Libeskind aos artistas abstratos e à obra do italiano Alberto Burri, influência clara nos quadros do arquiteto, que chegou a participar cinco vezes da Bienal.
Do alto da quitinete-ateliê de Di Prete, no centro de São Paulo, Libeskind descobriu um novo tipo de arte. "Quando chovia, ficavam aqueles guarda-chuvas circulando. Ele pegava o tubo de tinta vazio, de chumbo, e jogava lá de cima. Aquilo abria um buraco nos guarda-chuvas. Ele fazia composições assim. Enchia de polícia lá embaixo, e a gente ficava olhando pela veneziana", conta. "Ele chamava aquilo de arte cinética."


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