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Análise/"Bienal do Whitney'e "Gustave Courbet"
Longe da vanguarda de Duchamp, Bienal em NY exibe diversão
MARCO GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK
Aberta no início de março, em Nova York, a
prestigiosa Bienal do
Whitney conta, neste ano, com
81 artistas e se expande para
outros espaços da cidade como
o Armory, na Park Avenue com
a rua 69. Armories são edificações feitas no século 19 para regimentos militares, termo
apropriado para abrigar a vanguarda, que por sua vez remete
à estratégia militar.
Em 1913, com o "Armory
Show", situado na Lexington
com a rua 25, Nova York abriu
definitivamente as portas para
a arte moderna. A obra mais
polêmica e celebrada foi o "Nu
Descendo a Escada", do francês
Marcel Duchamp (1912), trabalho que despertou pouca atenção na França, sendo recusada
pela tropa de choque cubista
(da qual seus irmãos mais velhos faziam parte) em um salão
promovido por eles.
A partir do "Armory", Duchamp adquiriu uma notoriedade inédita e passou a viver
boa parte do seu tempo na nova
metrópole que tinha a vantagem, segundo ele, de não ter o
peso da tradição. Logo, Duchamp passou a ter um papel-chave na formação visual deste
país.
O projeto de fazer uma arte
inovadora, aparentemente
imune à tradição e ao museu e
que busca um contato com a vida, perdura como mote de vanguarda até hoje.
Entretanto, o primeiro movimento genuinamente americano ocorre com o expressionismo abstrato, que toma como
referência a Escola de Paris, em
especial Picasso e Matisse, ao
contrário de Duchamp.
É com a arte pop norte-americana que o pintor Duchamp
voltou à cena para ficar até hoje
como parâmetro para o que há
de mais "up-to-date" na arte
contemporânea.
Erotização do olhar
Como todo grande artista,
Marcel Duchamp permite várias interpretações de sua obra.
Talvez uma das mais instigantes maneiras de entender sua
amplitude possa ser vista não
na Bienal do Whitney, mas na
retrospectiva que o Metropolitan faz atualmente da obra de
Courbet.
Sabe-se que Duchamp condenava a arte feita depois de
Courbet por ser demasiadamente realista e retiniana. Como contraponto, Duchamp
buscava uma forma de fazer arte que erotiza o olhar.
Em sua obra final, "Etant
Donné", que permaneceu inédita até sua a morte, em 1968,
Duchamp faz referência ao lado
obscuro até então da obra de
Courbet, notadamente às suas
obras eróticas, como, por
exemplo, a célebre "Origem do
Mundo", de 1866, que retrata
apenas a região pubiana de uma
mulher, quadro que Lacan
guardava a sete chaves.
Nesta exposição inesquecível
de Courbet, podemos ver dispositivos óticos como o estereoscópio, que cria ilusões óticas em três dimensões de fotografias eróticas e que foram utilizadas posteriormente na concepção da grande obra final de
Duchamp. Jogar com as ilusões
óticas é algo recorrente na arte,
basta citar como exemplo a
perspectiva. Mas jogar com desilusões é um fenômeno contemporâneo.
Ao percorrer a bienal deste
ano, vemos dois procedimentos básicos nas operações artísticas: a colagem e a mistura dos
gêneros e técnicas.
As obras, de maneira geral,
utilizam materiais distintos e
inusitados, que vão do Gatorade a flores, como na obra de
Phoebe Washburn. Mas a estratégia recorrente é enganar o
espectador.
Quando se espera ver uma
pintura, na verdade depara-se
com uma fotografia simulando
a pintura, e vice-versa.
O mesmo ocorre com filmes
que voltam a explicitar o fotograma etc. Muitas obras foram
feitas para serem instaladas no
espaço do Whitney ou no do
Armory. Neste último espaço
glorioso, onde a biblioteca-sala
foi projetada pela Tiffany's
Company, é difícil superar a beleza arquitetônica do próprio
espaço, exceto por Lisa Sigal,
que fez uma instalação contundente no pavilhão central do
Armory praticamente vazio
(aliás, o vazio parece em voga
nos dias de hoje).
Em uma das enormes fachadas internas do ginásio, Lisa
bloqueou algumas portas e janelas com compensados coloridos. Em outros, utiliza uma luz
intensa vermelha de modo que
o espaço é transfigurado pelo
uso cromático.
O processo inverso ocorre no
Whitney: em uma sala pequena, ela cria uma parede onde
bloqueia a luz de tal maneira
que só pode ser vista mediante
as frestas da parede.
Neste caso, em vez de ilusória, a experiência visual é reveladora, bem como nas fotografias de Luise Lawer, nas projeções de Amy Granat e Drew
Heitzler ou na escultura de Ruben Ochoa.
Pão nosso de cada dia
O tema recorrente desta bienal são as mazelas do cotidiano,
a arte se alimenta do pão nosso
de cada dia.
Ao invés de colocarem o objeto de arte em suspensão, em
atrito com o espaço do museu
como faz Duchamp, onde um
"ready made" é e não é uma
obra de arte, neste caso vários
objetos cotidianos se tornam
artísticos pelo fato de estarem
no museu: um terno, bonecas,
flores etc.
Neste lugar, pode-se até fazer
terapia com o artista para aliviar a tensão do dia-a-dia, ou, se
o espectador quiser, deixar
uma lembrança de si mesmo
-ele pode ter seu retrato desenhado.
As obras se tornam não mais
máquinas eróticas, como um
dia a vanguarda sonhou, mas
dispositivos inusitados para
um espectador curioso que
procura diversão.
MARCO GIANNOTTI é pintor e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP
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