São Paulo, terça, 1 de abril de 1997.

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Eça de Queiroz volta para lutar contra a burrice

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

O Eça de Queiroz vinha andando pela rua S.Clemente, na hora da saída do meu colégio. Aparecia por volta do meio-dia, e eu já o esperava com ansiedade. Isso, quase 70 anos depois de sua morte. Tal era meu amor por esse escritor, que eu me postava na porta do Colégio Santo Inacio para ver passar seu sósia, um homenzinho da vizinhança.
Quem seria? Um bancário, um contador, quem? Tinha o rosto enfezado por um fígado ruim (como o Eça) que lhe franzia a boca num escárnio risonho. Tinha a mesma pastinha de cabelo sobre a testa curta, o olho rutilo, o mesmo bigode, o gogozinho de pássaro, os braços de cegonha, a palidez biliosa. Só lhe faltava o monóculo cravado no olho irônico.
Lembro-me disso agora, quando veio que a editora Nova Aguilar está lançando a obra completa do gênio, com lombada escarlate e arabescos vermelhos, como merece o ``pobre homem de Póvoa do Varzim''. Que emoção, ao ver passar aquele fantasma que eu criara em minha solidão secreta.
Eu era assim em 1958. Aos 13 anos, eu descobrira um volume esquecido na casa de meu avô, um livro da Lello, roído de traças: ``O Primo Bazilio'', que minha avó tentou proibir (``Isso não é para criança!''). E minha vida mudou. Era como se toda a névoa confusa de minha infância profunda, com uma família difícil de entender, vagas tias, vultos, rezas, tristes salas de jantar, segredos, secos padres jesuítas, remoto subúrbio, tivesse subitamente se dissipado.
O mundo que era o meu delírio ficou claro, por meio dos personagens de Eça. Ali estavam todos os tipos que eu conhecia sem decifrar, ali estavam explicados os arrepios de horror diante do teatrinho pequeno burguês do Rio. O primo Bazilio chegava com sua vaidade brutal e me explicava os cafajestes brasileiros, o Padre Amaro me decifrava a tristeza das clausuras, o rosto de dor e tesão dos jesuítas diante das mães dos alunos vestidas de Rita Hayworth, o Conselheiro Acacio era a burrice solene de professores e políticos, Damaso Salcede, covarde e oportunista, espelhava centenas de mediocridades gorduchas, Gonçalo Ramirez exibia a frágil consistência dos hesitantes, e tantos outros, Santo Deus, naquela galeria de tipos iluminadores...
E vinha Thomaz de Alencar e a literatice melancólica, vinha o banqueiro Cohen, esperto e corno, sentia a sensualidade da Condessa de Gouvarinho, flutuava no ar o cheiro enjoado da Titi Patrocinio da ``Relíquia'' e, claro, as coxas de Adelia, sem falar no supremo ``frisson'' do famoso ``minette'' do Primo Basilio na ``bovary'' Luisa (razão básica da proibição alarmada de minha avó).
E não só o desfile dos medíocres, mas as fileiras dos heróis ``ecianos'': Carlos da Maia, João da Ega, Jacintho de Tormes, FraDique Mendes -cultos, elegantes, ricos e corrosivamente inteligentes. Pelo outro lado da burrice, Eça me dava a alma viva do século 19 atacando a mediocridade portuguesa endêmica: a melancolia dos ex-descobridores, os sebastianistas de secretaria, os burocratas líricos e pulhas, os patriotas de charutaria, os políticos demagogos, a burrice épica de um Pacheco ou do Conde de Abranhos -que fartura!
Era uma sociologia ficcional da nossa herança ibérica, de nosso destino de fracassados seculares, de ex-escravistas estatizados, de dependentes da Coroa. Até hoje, quando vejo, por exemplo, a TV Senado, eu penso: será que esses caras aí na CPI nunca leram Eça de Queiroz? Nunca ninguém viu uma caricatura, ninguém leu Rabelais, ninguém viu Daumier, Hoggarth, Goya, ninguém leu Balzac, Flaubert, Swift? Não. Nada. O brasileiro de hoje navega tranquilo na mediocridade, intocado em sua vaidade estúpida.
A velha comparação entre Machado de Assis e Eça de Queiroz nunca me atingiu. Eu sempre preferi o português, ao nosso grande mulato. ``Ah... porque o Machado é bem mais sutil!...'' -(diz-se) comparando-se, por exemplo, Capitu à Luiza do ``Primo Basilio'' (que o próprio Machado, ameaçado e ciumento, ajudou a acusar de plágio da ``Eugenie Grandet'').
``Ahhh!... porque o Machado tem mais níveis de significação, mais complexidade psicológica etc. e tal.'' Tudo bem... O grande Machado atingiu subtons que o Eça nem tentou, por escolha. Machado é mais inglês; Eça é mais francês. Saído das costelas de Flaubert, Balzac e Zola, que ele pós-modernamente chegou até a ``plagiar'', Eça funda um realismo caricatural contra as perdidas ilusões ibéricas que passa por traços grossos, pelo riso deslavado, por uma proposital ``falta de sutileza'' (que resulta depois sutilíssima) na tradição de um realismo quase carnavalizado, sem anseios de transcendência.
Machado é mais, digamos, ``nauseado''. Deixa-se envolver por um pessimismo que o claro riso de Eça recusa. Eça não se enobrece com a trágica mediocridade de seus Brás Cubas -fustiga-os com ardores reformistas. É verdade que as personagens de Eça não são tão ``livres'' quanto em Machado. Mas seu estilo é superiormente ``livre''. Seu estilo, mesmo povoado de grotescos e óbvios, tem uma grandeza flaubertiana rara. Aí está, na sua forma, o sonho de um ``real'' impalpável.
O ``tipo'' eciano não tem o excesso de ``complexidade'' que talvez seja um ideal solene. Como em seu neto Nelson Rodrigues, há nele uma superficialidade ``profunda'', um ``materialismo'' mais alto muito atual neste mundo onde os valores idealizados caíram no chão. Neste sentido, Eça é um escritor público, hoje quando a política tem de ser (principalmente aqui) uma reforma cultural.
Eça escreveu sobre nossos principais defeitos: as ilusões de grandeza imerecida, a melancolia sem causa, a religiosidade ideológica, a falta de iniciativa prática e a incapacidade administrativa, o amor às idéias gerais, o horror ao público e a valorização do quixotismo privado, em suma, Eça retratou-nos ao criticar Portugal, um país formado na sombra de um Estado burocrático e seu filho, Brasil, onde o Estado nasce antes da sociedade civil.
A edição das ``Obras Completas'' pela Nova Aguilar é uma ótima oportunidade para os mais jovens descobrirem nossa burrice secular, feita da resistência às mudanças. Meu querido avô Eça de Queiroz voltou a passar nas ruas do Brasil, com seu riso sarcástico e seu monóculo faiscante.

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