|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Eça de Queiroz volta para lutar contra a burrice
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
O Eça de Queiroz vinha andando pela rua S.Clemente, na
hora da saída do meu colégio.
Aparecia por volta do
meio-dia, e eu já o esperava
com ansiedade. Isso, quase 70
anos depois de sua morte. Tal
era meu amor por esse escritor,
que eu me postava na porta do
Colégio Santo Inacio para ver
passar seu sósia, um homenzinho da vizinhança.
Quem seria? Um bancário,
um contador, quem? Tinha o
rosto enfezado por um fígado
ruim (como o Eça) que lhe
franzia a boca num escárnio
risonho. Tinha a mesma pastinha de cabelo sobre a testa
curta, o olho rutilo, o mesmo
bigode, o gogozinho de pássaro, os braços de cegonha, a palidez biliosa. Só lhe faltava o
monóculo cravado no olho irônico.
Lembro-me disso agora,
quando veio que a editora Nova Aguilar está lançando a
obra completa do gênio, com
lombada escarlate e arabescos
vermelhos, como merece o ``pobre homem de Póvoa do Varzim''. Que emoção, ao ver passar aquele fantasma que eu
criara em minha solidão secreta.
Eu era assim em 1958. Aos 13
anos, eu descobrira um volume
esquecido na casa de meu avô,
um livro da Lello, roído de traças: ``O Primo Bazilio'', que
minha avó tentou proibir (``Isso não é para criança!''). E minha vida mudou. Era como se
toda a névoa confusa de minha infância profunda, com
uma família difícil de entender, vagas tias, vultos, rezas,
tristes salas de jantar, segredos, secos padres jesuítas, remoto subúrbio, tivesse subitamente se dissipado.
O mundo que era o meu delírio ficou claro, por meio dos
personagens de Eça. Ali estavam todos os tipos que eu conhecia sem decifrar, ali estavam explicados os arrepios de
horror diante do teatrinho pequeno burguês do Rio. O primo
Bazilio chegava com sua vaidade brutal e me explicava os
cafajestes brasileiros, o Padre
Amaro me decifrava a tristeza
das clausuras, o rosto de dor e
tesão dos jesuítas diante das
mães dos alunos vestidas de
Rita Hayworth, o Conselheiro
Acacio era a burrice solene de
professores e políticos, Damaso
Salcede, covarde e oportunista,
espelhava centenas de mediocridades gorduchas, Gonçalo
Ramirez exibia a frágil consistência dos hesitantes, e tantos
outros, Santo Deus, naquela
galeria de tipos iluminadores...
E vinha Thomaz de Alencar e
a literatice melancólica, vinha
o banqueiro Cohen, esperto e
corno, sentia a sensualidade
da Condessa de Gouvarinho,
flutuava no ar o cheiro enjoado da Titi Patrocinio da ``Relíquia'' e, claro, as coxas de Adelia, sem falar no supremo ``frisson'' do famoso ``minette'' do
Primo Basilio na ``bovary''
Luisa (razão básica da proibição alarmada de minha avó).
E não só o desfile dos medíocres, mas as fileiras dos heróis
``ecianos'': Carlos da Maia,
João da Ega, Jacintho de Tormes, FraDique Mendes -cultos, elegantes, ricos e corrosivamente inteligentes. Pelo outro lado da burrice, Eça me dava a alma viva do século 19
atacando a mediocridade portuguesa endêmica: a melancolia dos ex-descobridores, os sebastianistas de secretaria, os
burocratas líricos e pulhas, os
patriotas de charutaria, os políticos demagogos, a burrice
épica de um Pacheco ou do
Conde de Abranhos -que fartura!
Era uma sociologia ficcional
da nossa herança ibérica, de
nosso destino de fracassados
seculares, de ex-escravistas estatizados, de dependentes da
Coroa. Até hoje, quando vejo,
por exemplo, a TV Senado, eu
penso: será que esses caras aí
na CPI nunca leram Eça de
Queiroz? Nunca ninguém viu
uma caricatura, ninguém leu
Rabelais, ninguém viu Daumier, Hoggarth, Goya, ninguém leu Balzac, Flaubert,
Swift? Não. Nada. O brasileiro
de hoje navega tranquilo na
mediocridade, intocado em
sua vaidade estúpida.
A velha comparação entre
Machado de Assis e Eça de
Queiroz nunca me atingiu. Eu
sempre preferi o português, ao
nosso grande mulato. ``Ah...
porque o Machado é bem mais
sutil!...'' -(diz-se) comparando-se, por exemplo, Capitu à
Luiza do ``Primo Basilio'' (que
o próprio Machado, ameaçado
e ciumento, ajudou a acusar de
plágio da ``Eugenie Grandet'').
``Ahhh!... porque o Machado
tem mais níveis de significação, mais complexidade psicológica etc. e tal.'' Tudo bem... O
grande Machado atingiu subtons que o Eça nem tentou, por
escolha. Machado é mais inglês; Eça é mais francês. Saído
das costelas de Flaubert, Balzac e Zola, que ele pós-modernamente chegou até a ``plagiar'', Eça funda um realismo
caricatural contra as perdidas
ilusões ibéricas que passa por
traços grossos, pelo riso deslavado, por uma proposital ``falta de sutileza'' (que resulta depois sutilíssima) na tradição
de um realismo quase carnavalizado, sem anseios de transcendência.
Machado é mais, digamos,
``nauseado''. Deixa-se envolver
por um pessimismo que o claro
riso de Eça recusa. Eça não se
enobrece com a trágica mediocridade de seus Brás Cubas
-fustiga-os com ardores reformistas. É verdade que as
personagens de Eça não são
tão ``livres'' quanto em Machado. Mas seu estilo é superiormente ``livre''. Seu estilo,
mesmo povoado de grotescos e
óbvios, tem uma grandeza
flaubertiana rara. Aí está, na
sua forma, o sonho de um
``real'' impalpável.
O ``tipo'' eciano não tem o
excesso de ``complexidade''
que talvez seja um ideal solene. Como em seu neto Nelson
Rodrigues, há nele uma superficialidade ``profunda'', um
``materialismo'' mais alto muito atual neste mundo onde os
valores idealizados caíram no
chão. Neste sentido, Eça é um
escritor público, hoje quando a
política tem de ser (principalmente aqui) uma reforma cultural.
Eça escreveu sobre nossos
principais defeitos: as ilusões
de grandeza imerecida, a melancolia sem causa, a religiosidade ideológica, a falta de iniciativa prática e a incapacidade administrativa, o amor às
idéias gerais, o horror ao público e a valorização do quixotismo privado, em suma, Eça
retratou-nos ao criticar Portugal, um país formado na sombra de um Estado burocrático
e seu filho, Brasil, onde o Estado nasce antes da sociedade civil.
A edição das ``Obras Completas'' pela Nova Aguilar é uma
ótima oportunidade para os
mais jovens descobrirem nossa
burrice secular, feita da resistência às mudanças. Meu querido avô Eça de Queiroz voltou
a passar nas ruas do Brasil,
com seu riso sarcástico e seu
monóculo faiscante.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|