São Paulo, terça-feira, 01 de maio de 2001

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ARNALDO JABOR

O Brasil precisava mesmo de um exame de fezes

Em seu novo livro de contos "Secreções, Excreções e Desatinos", Rubem Fonseca cria a ciência da "copromancia": visa descobrir o destino pelo exame das fezes. Em vez de ler a mão, ler o cocô. Nossos parasitas estão aparecendo nessa diarréia de escândalos políticos.
Há algo de novo nessa cachoeira de excremento. Estamos descobrindo que há um Brasil real e outro imaginário. O imaginário é um Brasil honesto, sonhador, quase inexistente. O Brasil real é esse conluio de mentiras e sordidez, vicejando sob uma decência fingida. O real é feito de pântanos, bosteiros e lamaçais. O imaginário é nossa pureza escandalizada de classe média. Com esses vexames, todos nos sentimos vítimas de um grande conto-do-vigário. O Brasil estava precisando mesmo de um exame de fezes. E isso é bom, porque entre vermes e bactérias podemos ver nosso avesso sujo.
Estamos vendo que, mais além das contradições tradicionais, classe, subdesenvolvimento, há uma encrenca originária, uma bosta primeva que determina nossas vidas. A corrupção, a mentira política não são pecados, são um sistema. Não são exceção, são a norma. Nosso processo histórico chapinha na bosta. Não há ladrões no Brasil, há muitas ocasiões. Sudam, Sudene, Finor etc. foram feitos para haver o roubo. Está provado: o Estado não tem de financiar empresários. Tem de sanear a economia para, com juros baixos, o sistema privado se autofinanciar.
A bosta é a matéria-prima de nossos sonhos. O interesse público nunca projeta e planeja. Nosso torto progresso é construído pelas migalhas que sobram das negociatas. A roubalheira é nosso combustível e compõe uma paisagem falsa, feita de viadutos inacabados, hospitais sem leitos, holocausto de rãs.
Nenhuma mudança política conseguiu extinguir essa merda fundadora. Ela é invencível. As faces do sistema sempre mudaram para que tudo ficasse igual. Houve o desenvolvimentismo (JK), o nacional-populismo (Jango), o autoritarismo militar, a redemocratização, e tudo sempre manteve intacto esse cocô originário, essa matéria fecal adâmica. Até FHC quis usar a bosta para se livrar dela numa espécie de homeopatia política: "Merda é curada pela merda" -a "real shit politic". Mas a bolha fecal maldita é maior do que ele pensava, está se revoltando e ameaça afogá-lo.
Há uma esperança: a falência do Estado ajuda. Não há muito mais o que roubar. Moralidade é uma questão de caixa baixa.
O exame de fezes mostra que nossos malfeitores são ousados e confiantes. Deixam pistas óbvias, não por incompetência, é pela fé na Justiça protetora, pela certeza da impunidade. Não por acaso, os juízes deram habeas corpus para os 27 ladrões da Sudam, de malas prontas para cruzar fronteiras.
O exame dessas fezes nos ensina que, muito mais importante que denunciar a miséria, que é óbvia, "déjà vu", é entender a mecânica das elites que a produzem. As notas frias, cheques falsos, fantasmas, rãs, barbalhos, lalaus e ACMs nos explicam. Temos aprendido muito, tanto quanto aprendemos com o grande PC Farias, esse Gilberto Freyre da corrupção, autor da frase eterna: "Dez por cento é para garçom...". O excremento é útil porque mostra que, na época de Collor, foi fácil bani-lo, como se ele fosse o único desonesto. Mas hoje vemos que a infecção é generalizada. O impeachment nos absolvia. Hoje, sabemos que Collor é o Brasil.
A bosta nos ensina que não adianta tapar o nariz e sonhar com a pureza. Só se combate a bosta entrando no esgoto. O que nos entope não são os grandes males. As rãs, os cheques frios, os ladrõezinhos secretos são mais daninhos que as grandes "crises da globalização".
A bosta nos ensina que o futuro não existe, existe o presente. As utopias nos desagregam. Não existe "projeto brasileiro". Tem de haver "projetos brasileiros" pontuais, saneadores. A grande política não é de gestos épicos, é de administração minuciosa. A Lei de Responsabilidade Fiscal é mais importante que mil discursos ideológicos.
A bosta nos ensina a literatura da corrupção. As palavras significam seus antônimos: "meu passado ilibado" significa "crimes não descobertos"; "minha honra" = "cara-de-pau"; "consciência social" = "medo da polícia".
Aprendemos que a verdade está na mentira e a mentira está na verdade.
Quando Arruda ou ACM ou Jader mentem, a verdade está mais ali do que quando eles empinam o peito e falam suas "verdades". A bosta nos ilustra. A cara inesquecível de José Osmar Borges, cínica, calma e entediada, é a síntese da moralidade brasileira.
As oligarquias não querem um país organizado. O respeito pela coisa pública é péssimo para os que se alimentam da zona do Estado, do caos pantanoso da nação. O grande projeto da oligarquia é uma terra sem lei, onde a democracia seja um disfarce para a predação e a corrupção. É bem mais fácil de manipular. Os corruptos e os oligarcas desejam a destruição de qualquer projeto que apareça. O excremento sistemático, a máquina fecal, a locomotiva de merda é lucrativa, como foi lucrativo, no século 19, impedir ao máximo a abolição dos escravos, como foi lucrativo para a elite o pacto por um atraso planejado.
Esse grande exame de fezes nacional nos ensina que devemos festejar e não deprimir. Se cairmos em desencanto e pessimismo, estaremos dando força às rãs e às hienas. Tudo o que eles querem é nossa desesperança. Animem-se. O Brasil está tomando banho. A bosta é nossa salvação.



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