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MARCELO COELHO
O que é que ele quis dizer com isso?
Há bastante tempo não
aparece um filme realmente
difícil de entender. Penso naqueles de arte que passavam no cine
Bijou aí por 1970. O espectador
tropeçava em símbolos. Às vezes,
a história corria normalmente até
aparecer um frango gigante, com
quem o protagonista (era o protagonista?) começava a dançar.
Era especialmente cruel deixar
a estranheza para o final do filme
-foi o caso de "2001" ou daquele
outro filme em que os personagens terminam jogando tênis sem
raquete nem bolinha. Mas em geral o amontoamento alegórico já
se manifestava nos primeiros minutos de projeção, como se toda a
obra imitasse aquele navio do
"Fitzcarraldo", que devia ser empurrado montanha acima pela
floresta amazônica, com toda a
sua carga de significados.
Por menos que se entendesse,
havia a inquietante sensação de
que -por trás da história simplesmente mal contada, das cenas
grotescas, da criptografia congestionada e paquidérmica- algo
muito importante estava sendo
dito.
Uma das razões do sucesso de
"Paris, Texas", de Wim Wenders,
ou da voga pós-moderna em torno de Jarmusch e de Beineix era
que ali se propunha um novo jogo
para os filmes "de arte": a simbologia, antes no primeiro plano,
tornava-se discreta, e o que era o
pano de fundo, a vaga linha narrativa, voltava a ter destaque.
Mas se tratava de uma narrativa
meio desbotada, plana, "lavada"
de detalhes e surpresas; tínhamos
filmes quase vazios, aliviados de
toda tralha imagética; quase puro
estilo, sem vocabulário.
O problema da incompreensibilidade, bem ou mal, havia sido
exorcizado -e os filmes que hoje
vemos no Espaço Unibanco podem ser monótonos ou até convencionais, mas dificilmente precisam de bula ou de manual de
instruções.
Não vou dizer que entendi "Cidade dos Sonhos", de David
Lynch. Mas acho curiosas as reações que esse filme anda provocando. Há uma leve espécie de
pânico no ar.
A história é das mais embrulhadas; da metade para o fim tudo é
virado pelo avesso e se desmente,
os personagens não são mais
quem eram e um monte de detalhes fica sem explicação. Mas o
pânico a que me referi não parece
ter origem nessa confusão toda. O
medo não é o de ficar sem entender o filme -é o de que alguém
venha explicá-lo.
Aqueles filmes obscuros da década de 70 motivavam dois tipos
de pergunta: "O que é que de fato
aconteceu?" e "O que é que estão
querendo dizer?" Em "Cidade dos
Sonhos", tudo é feito para dirigir
a atenção do público apenas para
a primeira pergunta. Somos forçados a reconstituir mentalmente
a história do filme. Podemos concluir, por exemplo, que a personagem principal é uma psicopata
que andou sonhando na primeira
metade do filme e, na segunda
parte, acorda em estado de perfeito delírio.
É aí que intervém um grande
risco de chatice: ir enveredando
na floresta de pormenores que
desmentem ou comprovam isso
ou aquilo. Seria levar "Cidade dos
Sonhos" a sério demais; a meu
ver, o filme se dedica propositadamente a desmontar o quebra-cabeça que ele próprio criou.
Diverti-me com "Cidade dos Sonhos" como se fosse uma montanha-russa (detesto montanha-russa, aliás). A história faz vários
"loopings", de modo que não sabemos direito se estamos de cabeça para baixo ou se já voltamos
ao normal. Mas fiquei pensando
no segundo tipo de pergunta: o
que é que "Cidade dos Sonhos"
está querendo dizer? É como se essa pergunta estivesse oculta no filme e não incomodasse demais.
Mesmo assim, surgem estranhezas desse lado também.
As cenas iniciais do filme
-uma dança no gênero do
"twist" enquanto vão aparecendo
os créditos- são um pastiche não
do cinema dos anos 60, mas dos
seriados de televisão. As caras, os
trejeitos dos atores também são
"televisivos"; e as próprias referências a clássicos do cinema
("Um Corpo que Cai", de Hitchcock, é a mais visível) não são
propriamente alusões num sentido estrito. Aparecem como se David Lynch estivesse imitando um
seriado de TV que estivesse imitando um filme de Hitchcock... ou
do próprio David Lynch.
A história se passa em Hollywood, com uma mocinha clássica
à procura do estrelato. Essa mocinha topa com uma morena desmemoriada. Sem se lembrar do
próprio nome, a morena assume
o de Rita, em "homenagem" a Rita Hayworth.
Toda a primeira parte do filme
estaria, assim, imitando o "fake"
da TV quando esta "homenageia" a mitologia de Hollywood.
A segunda parte estaria, então,
encarregada de destruir, de inverter, de explodir essa aparência televisiva, intensificando ao máximo a violência, o delírio, a incompreensibilidade do "mundo real".
O problema é que esse "mundo
real" -dramas de amor, vingança, despeito, psicopatia- é mais
novelesco ainda. Passamos do seriado americano de 1960 para a
novela mexicana ou brasileira.
Com toques de David Lynch, naturalmente.
O filme acaba dando uma impressão de beco sem saída por
mais crítico que possa ser com relação a Hollywood e à indústria
cultural. Ironiza-se a nostalgia
dos anos 60: o fenômeno já foi interpretado como uma tentativa
de reencontrar um sentido imaginário para a história americana,
ao mesmo tempo em que se decreta o "fim da história". A alternativa "real" para essa nostalgia, entretanto, parece ser o pesadelo da
latino-americanização -fala-se
espanhol como nunca nesse filme-, e David Lynch tampouco
parece exultar diante disso.
"Cidade dos Sonhos" é, de alguma forma, uma história sem protagonista, sem sujeito. Talvez por
isso o mal-estar diante de sua incompreensibilidade. Não é só que
não entendemos a história que está sendo contada; não sabemos
quem a está vivendo e nem mesmo se alguém de fato a está contando.
PS. A propósito do artigo da semana passada, a assessoria de
imprensa do apresentador Marcos Mion enviou-me mensagem
dizendo que no programa "Descontrole", da TV Bandeirantes,
não há competições em que participantes são obrigados a comer
animais repulsivos.
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