São Paulo, quarta-feira, 01 de maio de 2002

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MARCELO COELHO

O que é que ele quis dizer com isso?

Há bastante tempo não aparece um filme realmente difícil de entender. Penso naqueles de arte que passavam no cine Bijou aí por 1970. O espectador tropeçava em símbolos. Às vezes, a história corria normalmente até aparecer um frango gigante, com quem o protagonista (era o protagonista?) começava a dançar.
Era especialmente cruel deixar a estranheza para o final do filme -foi o caso de "2001" ou daquele outro filme em que os personagens terminam jogando tênis sem raquete nem bolinha. Mas em geral o amontoamento alegórico já se manifestava nos primeiros minutos de projeção, como se toda a obra imitasse aquele navio do "Fitzcarraldo", que devia ser empurrado montanha acima pela floresta amazônica, com toda a sua carga de significados.
Por menos que se entendesse, havia a inquietante sensação de que -por trás da história simplesmente mal contada, das cenas grotescas, da criptografia congestionada e paquidérmica- algo muito importante estava sendo dito.
Uma das razões do sucesso de "Paris, Texas", de Wim Wenders, ou da voga pós-moderna em torno de Jarmusch e de Beineix era que ali se propunha um novo jogo para os filmes "de arte": a simbologia, antes no primeiro plano, tornava-se discreta, e o que era o pano de fundo, a vaga linha narrativa, voltava a ter destaque. Mas se tratava de uma narrativa meio desbotada, plana, "lavada" de detalhes e surpresas; tínhamos filmes quase vazios, aliviados de toda tralha imagética; quase puro estilo, sem vocabulário.
O problema da incompreensibilidade, bem ou mal, havia sido exorcizado -e os filmes que hoje vemos no Espaço Unibanco podem ser monótonos ou até convencionais, mas dificilmente precisam de bula ou de manual de instruções.
Não vou dizer que entendi "Cidade dos Sonhos", de David Lynch. Mas acho curiosas as reações que esse filme anda provocando. Há uma leve espécie de pânico no ar.
A história é das mais embrulhadas; da metade para o fim tudo é virado pelo avesso e se desmente, os personagens não são mais quem eram e um monte de detalhes fica sem explicação. Mas o pânico a que me referi não parece ter origem nessa confusão toda. O medo não é o de ficar sem entender o filme -é o de que alguém venha explicá-lo.
Aqueles filmes obscuros da década de 70 motivavam dois tipos de pergunta: "O que é que de fato aconteceu?" e "O que é que estão querendo dizer?" Em "Cidade dos Sonhos", tudo é feito para dirigir a atenção do público apenas para a primeira pergunta. Somos forçados a reconstituir mentalmente a história do filme. Podemos concluir, por exemplo, que a personagem principal é uma psicopata que andou sonhando na primeira metade do filme e, na segunda parte, acorda em estado de perfeito delírio.
É aí que intervém um grande risco de chatice: ir enveredando na floresta de pormenores que desmentem ou comprovam isso ou aquilo. Seria levar "Cidade dos Sonhos" a sério demais; a meu ver, o filme se dedica propositadamente a desmontar o quebra-cabeça que ele próprio criou.
Diverti-me com "Cidade dos Sonhos" como se fosse uma montanha-russa (detesto montanha-russa, aliás). A história faz vários "loopings", de modo que não sabemos direito se estamos de cabeça para baixo ou se já voltamos ao normal. Mas fiquei pensando no segundo tipo de pergunta: o que é que "Cidade dos Sonhos" está querendo dizer? É como se essa pergunta estivesse oculta no filme e não incomodasse demais. Mesmo assim, surgem estranhezas desse lado também.
As cenas iniciais do filme -uma dança no gênero do "twist" enquanto vão aparecendo os créditos- são um pastiche não do cinema dos anos 60, mas dos seriados de televisão. As caras, os trejeitos dos atores também são "televisivos"; e as próprias referências a clássicos do cinema ("Um Corpo que Cai", de Hitchcock, é a mais visível) não são propriamente alusões num sentido estrito. Aparecem como se David Lynch estivesse imitando um seriado de TV que estivesse imitando um filme de Hitchcock... ou do próprio David Lynch.
A história se passa em Hollywood, com uma mocinha clássica à procura do estrelato. Essa mocinha topa com uma morena desmemoriada. Sem se lembrar do próprio nome, a morena assume o de Rita, em "homenagem" a Rita Hayworth.
Toda a primeira parte do filme estaria, assim, imitando o "fake" da TV quando esta "homenageia" a mitologia de Hollywood. A segunda parte estaria, então, encarregada de destruir, de inverter, de explodir essa aparência televisiva, intensificando ao máximo a violência, o delírio, a incompreensibilidade do "mundo real".
O problema é que esse "mundo real" -dramas de amor, vingança, despeito, psicopatia- é mais novelesco ainda. Passamos do seriado americano de 1960 para a novela mexicana ou brasileira. Com toques de David Lynch, naturalmente.
O filme acaba dando uma impressão de beco sem saída por mais crítico que possa ser com relação a Hollywood e à indústria cultural. Ironiza-se a nostalgia dos anos 60: o fenômeno já foi interpretado como uma tentativa de reencontrar um sentido imaginário para a história americana, ao mesmo tempo em que se decreta o "fim da história". A alternativa "real" para essa nostalgia, entretanto, parece ser o pesadelo da latino-americanização -fala-se espanhol como nunca nesse filme-, e David Lynch tampouco parece exultar diante disso.
"Cidade dos Sonhos" é, de alguma forma, uma história sem protagonista, sem sujeito. Talvez por isso o mal-estar diante de sua incompreensibilidade. Não é só que não entendemos a história que está sendo contada; não sabemos quem a está vivendo e nem mesmo se alguém de fato a está contando.
PS. A propósito do artigo da semana passada, a assessoria de imprensa do apresentador Marcos Mion enviou-me mensagem dizendo que no programa "Descontrole", da TV Bandeirantes, não há competições em que participantes são obrigados a comer animais repulsivos.



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