|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CINEMA/ESTRÉIA
"Kamchatka" mostra a ditadura através do olhar de um menino
Brincadeira de gente grande
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
Para abordar o tema da ditadura
política do ponto de vista de uma
criança (no filme "Kamchatka",
que estréia hoje), o diretor argentino Marcelo Piñeyro ("Plata
Quemada") recorreu à metáfora
de um brinquedo infantil.
Versão argentina do jogo conhecido no Brasil como War, o
TEG representa o mundo num tabuleiro. E propõe aos jogadores
que se entreguem a conquistas,
derrotas, negociações, fúrias expansionistas ou cuidados para
preservar seus territórios.
No TEG, a ilha russa de Kamchatka é um ponto estratégico.
"Fica bem à direita do tabuleiro,
como se estivesse caindo dele,
mas [a partir da península] se pode entrar nos Estados Unidos pelo
Alaska, o que é ótimo para surpreender adversários distraídos",
diz Piñeyro.
Em "Kamchatka", o pequeno
pedaço de terra simboliza o ponto
de partida de um imenso aprendizado na vida do garoto Harry
(Matías del Pozo) e a consolidação de uma relação de afeto com
seu pai (Ricardo Darín).
Clandestinidade
Além de disputar partidas de
TEG com o pai, o cotidiano de
Harry é dividido com um irmão
caçula (Milton de la Canal) e a
mãe (Cecilia Roth). A família parte para a clandestinidade quando
irrompe o golpe militar de 1976.
"De uma hora para outra, esses
meninos precisam deixar sua casa, seu colégio e até seus nomes,
para começar uma nova vida",
descreve o cineasta.
Piñeyro diz que "não pretendia
apresentar um ponto de vista inédito sobre essa história [da ditadura militar], mas apenas contá-la outra vez, de outra perspectiva.
A ótica infantil interessou o cineasta porque "o olhar de um garoto é necessariamente inocente
e, se o espectador aceitar o convite
para compartilhar esse ângulo,
tem a chance de desvencilhar-se
de seus preconceitos, voltar a ver,
refrescar o olhar".
O percurso de Harry inclui conflitos de adaptação à vida na clandestinidade, a incompreensão da
atitude dos pais (que repercute
nele com a sensação do abandono) até chegar à conclusão final
(ou primeira) de que "Kamchatka
é o lugar de onde se resiste".
Piñeyro diz que o desfecho centrado no valor da resistência permite relacionar a Argentina de
1976 com a dos anos 2000, mas
que seu filme não pretende ser
"didático" nem conter uma mensagem exclusivamente política.
Crise
"Acredito que a raiz da atual crise argentina esteja na ditadura
militar, quando começam a implementar a política que culmina
nesse cenário", afirma.
Mas, em seguida, pondera: "A
maneira com que o filme apresenta o conceito de resistir tem a ver
com um lugar da alma. Vai além
do social, do pontual do momento de hoje. Relaciona-se com a
certeza de que existem coisas que
são inegociáveis".
Por tratar de "questões da alma"
e abordar "relações familiares,
vínculos de pais e filhos e legados
transmitidos de geração a geração", o filme corre num "cordão
emocional", como afirma o cineasta.
Para não arriscar-se ao pieguismo, Piñeyro optou por "deixar as
emoções fortemente contidas".
Ele diz que essa opção narrativa
"não foi nem contraditória nem
difícil no caso desta história, já
que é isso [guardar as emoções,
embora sentindo-as intensamente] o que os personagens estão fazendo permanentemente".
Alguma dificuldade surgiu apenas durante as filmagens, quando
os atores "se deixavam levar". Piñeyro, então, interrompia as cenas. "São personagens muito próximos e reconhecíveis, nós os conhecemos todos", diz o diretor.
Num dos (poucos) momentos
de descontração de "Kamchatka",
a família dança ao som de "O Calhambeque", de Roberto Carlos,
interpretada por Caetano Veloso.
"Era um momento de diversão,
eu precisava de uma canção bonita, entre rítmica e infantil", diz Piñeyro, para explicar sua escolha.
Texto Anterior: Crítica: Filme enrosca na "armadilha do roteiro" Próximo Texto: Crítica: Falta paixão a Piñeyro para (re)contar história Índice
|