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São Paulo, quinta-feira, 01 de maio de 2003

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CINEMA/ESTRÉIA

"Kamchatka" mostra a ditadura através do olhar de um menino

Brincadeira de gente grande

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Para abordar o tema da ditadura política do ponto de vista de uma criança (no filme "Kamchatka", que estréia hoje), o diretor argentino Marcelo Piñeyro ("Plata Quemada") recorreu à metáfora de um brinquedo infantil.
Versão argentina do jogo conhecido no Brasil como War, o TEG representa o mundo num tabuleiro. E propõe aos jogadores que se entreguem a conquistas, derrotas, negociações, fúrias expansionistas ou cuidados para preservar seus territórios.
No TEG, a ilha russa de Kamchatka é um ponto estratégico. "Fica bem à direita do tabuleiro, como se estivesse caindo dele, mas [a partir da península] se pode entrar nos Estados Unidos pelo Alaska, o que é ótimo para surpreender adversários distraídos", diz Piñeyro.
Em "Kamchatka", o pequeno pedaço de terra simboliza o ponto de partida de um imenso aprendizado na vida do garoto Harry (Matías del Pozo) e a consolidação de uma relação de afeto com seu pai (Ricardo Darín).

Clandestinidade
Além de disputar partidas de TEG com o pai, o cotidiano de Harry é dividido com um irmão caçula (Milton de la Canal) e a mãe (Cecilia Roth). A família parte para a clandestinidade quando irrompe o golpe militar de 1976.
"De uma hora para outra, esses meninos precisam deixar sua casa, seu colégio e até seus nomes, para começar uma nova vida", descreve o cineasta.
Piñeyro diz que "não pretendia apresentar um ponto de vista inédito sobre essa história [da ditadura militar], mas apenas contá-la outra vez, de outra perspectiva.
A ótica infantil interessou o cineasta porque "o olhar de um garoto é necessariamente inocente e, se o espectador aceitar o convite para compartilhar esse ângulo, tem a chance de desvencilhar-se de seus preconceitos, voltar a ver, refrescar o olhar".
O percurso de Harry inclui conflitos de adaptação à vida na clandestinidade, a incompreensão da atitude dos pais (que repercute nele com a sensação do abandono) até chegar à conclusão final (ou primeira) de que "Kamchatka é o lugar de onde se resiste".
Piñeyro diz que o desfecho centrado no valor da resistência permite relacionar a Argentina de 1976 com a dos anos 2000, mas que seu filme não pretende ser "didático" nem conter uma mensagem exclusivamente política.

Crise
"Acredito que a raiz da atual crise argentina esteja na ditadura militar, quando começam a implementar a política que culmina nesse cenário", afirma.
Mas, em seguida, pondera: "A maneira com que o filme apresenta o conceito de resistir tem a ver com um lugar da alma. Vai além do social, do pontual do momento de hoje. Relaciona-se com a certeza de que existem coisas que são inegociáveis".
Por tratar de "questões da alma" e abordar "relações familiares, vínculos de pais e filhos e legados transmitidos de geração a geração", o filme corre num "cordão emocional", como afirma o cineasta.
Para não arriscar-se ao pieguismo, Piñeyro optou por "deixar as emoções fortemente contidas". Ele diz que essa opção narrativa "não foi nem contraditória nem difícil no caso desta história, já que é isso [guardar as emoções, embora sentindo-as intensamente] o que os personagens estão fazendo permanentemente".
Alguma dificuldade surgiu apenas durante as filmagens, quando os atores "se deixavam levar". Piñeyro, então, interrompia as cenas. "São personagens muito próximos e reconhecíveis, nós os conhecemos todos", diz o diretor.
Num dos (poucos) momentos de descontração de "Kamchatka", a família dança ao som de "O Calhambeque", de Roberto Carlos, interpretada por Caetano Veloso.
"Era um momento de diversão, eu precisava de uma canção bonita, entre rítmica e infantil", diz Piñeyro, para explicar sua escolha.


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