São Paulo, segunda-feira, 01 de maio de 2006

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FORMA&ESPAÇO

Ur, de urbano

GUILHERME WISNIK
COLUNISTA DA FOLHA

A idéia de cidade está por trás de muitos conceitos fundamentais que orientam a sociedade. Um exemplo clássico é a palavra "política", que em grego antigo está ligado à cidade (pólis), como noção de "cidadania". Mas sempre me invoquei com uma outra coincidência envolvendo a definição de cidade: a semelhança dos nomes Ur e Uruk, que designam as primeiras cidades de que se tem notícia, construídas na Mesopotâmia por volta de 3.200 a.C., com o radical da nossa palavra "urbano", do latim "urbe".
Não é curioso que a partícula silábica "ur", que nomeia as terras do profeta Abraão e do lendário herói construtor de cidades Gilgamesh, e que tem a simplicidade de um grito primal, esteja incluída em palavras como urbe e burgo? A partir dessas associações simples, fui me dando conta de que "ur" é uma partícula sonora presente em palavras-chave de nossa árvore lingüística, tais como uretra (o canal do sêmen), urano (em grego, o céu), e urânio (usado na produção da energia nuclear).
Enfim, senti-me de pronto diante de uma urdidura cosmológica digna de ter sido arquitetada por Jorge Luis Borges. Pois bem, essa inquietação divertida aumentou ainda quando me disseram que "ur", em alemão, é origem.
Consultando um amigo, vim a saber que a associação do "ur" germânico ao "Ur" mesopotâmico é clássica, e gozou de muito prestígio entre os românticos alemães do século 19, aludindo a uma suposta língua-mãe da humanidade, e alimentando um "mito de origem" ariano que ocupou a imaginação de germanófilos, e esteve na base da eugenia nazista.
É claro que, de minha parte, não são os desdobramentos ideológicos dessas coincidências que motivam a reflexão, nem a sua validade histórica, mas a idéia de que o aparecimento concreto da cidade na história viesse a nomear aquilo que se entende por origem, fundamento. Quer dizer: a partir de um caminho associativo chegaríamos a cidade como metáfora da condição humana em sua engenhosidade edificante, ritual. Condição que é também trágica, pois as cidades, assim como os homens, estão sujeitas ao ciclo de vida e morte. Sentido que está por trás das "cidades invisíveis" de Italo Calvino, das "cidades inventadas" de Ferreira Gullar, assim como de inúmeros contos de Borges.
Borges é um mestre dos enigmas, e em "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius" descreve uma cidade/ país/planeta inventado, por uma sociedade secreta, como um mundo fantástico mas ordenado, cuja existência (fictícia) é atestada por sinais erráticos que vão sendo deixados em tratados acadêmicos, verbetes de enciclopédia etc.
Em Tlön, a realidade pode ser fabricada pelo desejo, materializando objetos, na forma de achados arqueológicos, que mudam a nossa compreensão do passado. Essa propriedade, em seu estado mais puro, diz Borges, é a "ur".
Poderosa imagem da nossa compulsão em criar futuros com os mesmos olhos arregalados com que olhamos para o passado, como que buscando a senha para algo secreto na fronteira inominável entre o ocultamento e o encantamento.


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