São Paulo, domingo, 01 de maio de 2011

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OPINIÃO

Choque entre contextos é da natureza de todas as pilhérias

HÉLIO SCHWARTSMAN
ARTICULISTA DA FOLHA

OK. Eles pegaram pesado. Fazer troça com autistas é quase tão ruim quanto passar rasteira em cego. Mas o simples fato de alguém ter achado que isso seria engraçado já revela um paradoxo: por que somos capazes de rir da desgraça alheia?
Comecemos, no rastro do escritor Arthur Koestler (1905-1983), tentando estabelecer a "gramática" do humor. De um modo geral, rimos quando percebemos um choque entre dois códigos de regras ou de contextos, todos consistentes, mas incompatíveis entre si.
Um exemplo: "O masoquista é a pessoa que gosta de um banho frio pelas manhãs e, por isso, toma uma ducha quente". Cometo agora a heresia de explicar a piada. Aqui, o fato de o sujeito da anedota ser um masoquista subverte a lógica normal: ele faz o contrário do que gosta, porque gosta de sofrer. É claro que a lógica normal não coexiste com seu reverso, daí a graça da pilhéria. Uma variante no mesmo padrão, mas com dupla inversão, é: "O sádico é a pessoa que é gentil com o masoquista".
Outro bom exemplo é o do médico que conforta seu paciente dizendo: "Você está com uma doença muito grave. De cada dez pessoas que a pegam, apenas uma sobrevive. E você está com sorte, acabo de perder nove pacientes com essa moléstia".
O gozado aí emerge da oposição entre a abstração estatística e o a concretude do caso real do paciente. Sabemos que a estatística só vale se não a tentarmos aplicar a casos concretos. Também sabemos que as chances de um dado evento ocorrer independem de eventos anteriores. A piada confunde todos esses planos.
Essa estrutura de choque de contextos excludentes entre si está presente em todas as pilhérias. Até no mais infame trocadilho há um confronto inesperado entre o significado da palavra e o seu som: "A ordem dos tratores não altera o viaduto".
Podemos agora traçar uma escala do humor, dos mais primitivos aos mais sofisticados. Bebês, que também são capazes de rir, deliciam-se com caretas e imitações. Garotos pré-adolescentes deliciam-se com piadas escatológicas. Quanto mais cocô, xixi e xingamentos, melhor.
Já adolescentes gostam de anedotas sexuais. À medida que crescem, vão -espera-se- buscando formas mais sofisticadas e cerebrais.
Essa "gramática" dá conta da estrutura intelectual das piadas, mas há outros aspectos em jogo. O humor também encerra dinâmicas emocionais. Ele de alguma forma se relaciona com a surpresa.
Kant, na "Crítica do Juízo", diz que o riso é o resultado da "súbita transformação de uma expectativa tensa em nada". Rimos porque nos sentimos aliviados. É nesse contexto que se torna plausível rir de desgraças alheias.
Em alemão, até existe uma palavra para isso: "Schadenfreude", que é o sentimento de alegria ou prazer provocado pelo sofrimento de terceiros. Não necessariamente estamos felizes pelo infortúnio do outro, mas sentimo-nos aliviados com o fato de não termos sido nós a vítima.
Mais ou menos na mesma linha vai o filósofo francês Henri Bergson (1859-1941). Em "O Riso", ele observa que muitas piadas exigem "uma anestesia momentânea do coração". A crueldade é explícita nos chistes mais primitivos (como a "Casa dos Autistas"), mas sobrevive mesmo nos gracejos mais elaborados, na forma de malícia (caso das piadas em que se comparam diversas nacionalidades), autodepreciação (típica do humor judaico) ou, mais simplesmente, na suspensão da solidariedade para com a vítima (sim, piadas geralmente têm vítimas).
Há, por fim, a dinâmica social. Bergson vê o riso como um "gesto social". Para o filósofo, o temor de tornar-se objeto de riso reprime as excentricidades do indivíduo. É uma espécie de superego social portátil. É claro que o esquema perde o sentido quando a vítima não tem condições de reagir à provocação humorística, como no caso dos autistas. Mas a ineficácia social não faz com que, no plano da gramática, a piada deixe de ser engraçada. Daí os inevitáveis choques entre humor e adequação social.


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