São Paulo, sexta, 1 de maio de 1998

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Cerimônia de aplacar a gula de um orixá

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

Jorge Amado ouviu-me com atenção. Eu precisava fazer uma reportagem sobre os candomblés da Bahia. Perguntei se isso podia me prejudicar. Ele respondeu sabiamente: "Mal não pode fazer".
Acompanhou-me aos umbrais do alto do Gantois, onde a ialorixá Maria Escolástica Conceição de Nazaré, mãe-de-santo Menininha do Gantois, "com exemplar dedicação e perene bondade, há 50 anos zela pelos orixás e pelo povo da Bahia" -foi o que li numa placa cujo texto traía o estilo e a devoção do romancista baiano.
Encontrei-o vestido de branco, belo como um babalaô, seus cabelos combinando com aquela veste nupcial e turística. Mãe Menininha estava se aprontando. Como filha de Oxum, a vaidade é um dos seus atributos espirituais. Jorge pediu que ela jogasse os búzios para mim.
Deu Xangô na cabeça. É um santo cabreiro, rei do fogo e do trovão, que cometeu incesto com a mãe. Gosta de cágados. Sua cor é vermelha e branca. Orixá dos raios é esposo de Iansã, Oxum e Obá.
Identificado meu pai espiritual, Mãe Menininha recomendou-me uma descarga. Alguém mal informado andava me invejando e uma mulher havia feito trabalho forte para me atrapalhar os caminhos -já atrapalhados por natureza. Jorge me explicou em voz baixa que Xangô é reservado, não gosta de se misturar com os outros. Foi o único atributo de meu pai espiritual que me calhou. Não sou incestuoso nem domino os raios e trovões. Tampouco aprecio cágados.
Recebi a lista de ingredientes que devia comprar: dois galos, feijões de diversas qualidades, verduras variadas, farinha, dendê, acarajé, abará e outras guloseimas que os santos apreciam. Levei um dia para reunir a munição solicitada. Já era noite quando entrei pelos fundos do terreiro, deixando na cozinha os apetrechos. Ali viviam umas 20 pessoas; imaginei que no dia seguinte haveria um suculento cozido no cardápio.
Na manhã seguinte, fizeram-me entrar numa pequena casinhola dedicada a Exu. Trata-se de um profissional que desempenha as funções que lhe encomendam. Tal como os frades espanhóis dos romances de capa e espada, dele se esperam as piores coisas. Qualquer ritual precisa puxar o saco dele.
Lá fui eu, acompanhado por duas acólitas idosas e uma jovem filha-de-santo, roliça e de olhos verdes. Quando entrei nos domínios de Exu, vi intactos todos os mantimentos que trouxera na véspera. Uma das velhas fez um círculo de giz baiano no cimento, mandou que ali me postasse. A mocinha de olhos verdes começou a falar em nagô enquanto passava pelo meu corpo a comida que eu havia levado. Uma das velhas misturava tudo num alguidar de barro.
A "pièce de resistence" foram os galos. Uma das acólitas mandou que eu segurasse um dos galináceos e contasse aos ouvidos dele as minhas desditas, fazendo depois os meus pedidos.
Eu não tinha nada a pedir, especificamente. Olhei bem o galo. Nem sabia ao certo onde fica o ouvido dos galos. Assustado, temendo que boa coisa não o aguardava, ele estava apavorado. Seu olho redondo me fixava, severamente, como se soubesse a bisca que sou. Uma das velhas, por experiência adquirida no ofício, lembrou a virilidade: "Peça a força, meu filho... tem mulher querendo te atrapalhar..." Recusei a sugestão: não se mexe em time que está ganhando. Preferi pensar em abstrações, felicidade, saúde, prosperidade, paciência, amor à pátria. As velhas me urgiam: "Fale... fale... Exu está esperando..."
Perdi a vergonha e murmurei naquilo que julgava ser as ouças do galo uma abominável exigência de minha carne. A ave deu uma tremedeira e fez suas necessidades: sabia que ia morrer. Mandaram-me que segurasse com firmeza a presa, mas olhasse para o lado.
Quando voltei à posição anterior, o galo continuava em minhas mãos, mas sem a cabeça. A mocinha apanhou-o e foi sangrá-lo em cima dos tridentes de ferro e da efígie de Exu, que num canto escuro parecia satisfeito com a cerimônia. As velhas começaram a incentivá-lo com uma xingação cordial e bilíngue, usando termos em nagô e português. Volta e meia eu entendia uma frase: "Anda, seu safado, entope esta barriga... Coma, coma, seu malandro... Encha bem esta pança... E agora beba... Beba até se entupir..." Exu ficou melado de sangue, bebendo e gozando, a pança farta. E abrindo-me os caminhos.
Saí de lá e me levaram a outra casa, a do Oxalá, pai de todos. Ali tudo era branco, calmo, repousante. Fizeram-me acender duas velas. Por conta própria, sem ninguém me pedir nada, agradeci aos santos.
Recomendei amigos e desafetos, amadas e desamadas, vivos e mortos. Inebriado pela generosidade súbita, exagerei: pedi ordem e progresso para o Brasil.
Deixei as duas velas lambendo o espaço sagrado de Oxalá, testemunhas de minha peregrinação ao reino encantado dos orixás. Senti-me sujo de sangue, o cheiro das velas entrara em minhas roupas, minha carne suava, como depois de uma posse sofrida. Estava redimido de velhas culpas e pronto para adquirir novas.



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