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Cerimônia de aplacar a gula de um orixá
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Jorge Amado ouviu-me com
atenção. Eu precisava fazer
uma reportagem sobre os candomblés da Bahia. Perguntei
se isso podia me prejudicar. Ele
respondeu sabiamente: "Mal
não pode fazer".
Acompanhou-me aos umbrais do alto do Gantois, onde
a ialorixá Maria Escolástica
Conceição de Nazaré,
mãe-de-santo Menininha do
Gantois, "com exemplar dedicação e perene bondade, há 50
anos zela pelos orixás e pelo
povo da Bahia" -foi o que li
numa placa cujo texto traía o
estilo e a devoção do romancista baiano.
Encontrei-o vestido de branco, belo como um babalaô, seus
cabelos combinando com
aquela veste nupcial e turística. Mãe Menininha estava se
aprontando. Como filha de
Oxum, a vaidade é um dos seus
atributos espirituais. Jorge pediu que ela jogasse os búzios
para mim.
Deu Xangô na cabeça. É um
santo cabreiro, rei do fogo e do
trovão, que cometeu incesto
com a mãe. Gosta de cágados.
Sua cor é vermelha e branca.
Orixá dos raios é esposo de
Iansã, Oxum e Obá.
Identificado meu pai espiritual, Mãe Menininha recomendou-me uma descarga. Alguém mal informado andava
me invejando e uma mulher
havia feito trabalho forte para
me atrapalhar os caminhos
-já atrapalhados por natureza. Jorge me explicou em voz
baixa que Xangô é reservado,
não gosta de se misturar com
os outros. Foi o único atributo
de meu pai espiritual que me
calhou. Não sou incestuoso
nem domino os raios e trovões.
Tampouco aprecio cágados.
Recebi a lista de ingredientes
que devia comprar: dois galos,
feijões de diversas qualidades,
verduras variadas, farinha,
dendê, acarajé, abará e outras
guloseimas que os santos apreciam. Levei um dia para reunir
a munição solicitada. Já era
noite quando entrei pelos fundos do terreiro, deixando na
cozinha os apetrechos. Ali viviam umas 20 pessoas; imaginei que no dia seguinte haveria um suculento cozido no
cardápio.
Na manhã seguinte, fizeram-me entrar numa pequena
casinhola dedicada a Exu.
Trata-se de um profissional
que desempenha as funções
que lhe encomendam. Tal como os frades espanhóis dos romances de capa e espada, dele
se esperam as piores coisas.
Qualquer ritual precisa puxar
o saco dele.
Lá fui eu, acompanhado por
duas acólitas idosas e uma jovem filha-de-santo, roliça e de
olhos verdes. Quando entrei
nos domínios de Exu, vi intactos todos os mantimentos que
trouxera na véspera. Uma das
velhas fez um círculo de giz
baiano no cimento, mandou
que ali me postasse. A mocinha
de olhos verdes começou a falar em nagô enquanto passava
pelo meu corpo a comida que
eu havia levado. Uma das velhas misturava tudo num alguidar de barro.
A "pièce de resistence" foram
os galos. Uma das acólitas
mandou que eu segurasse um
dos galináceos e contasse aos
ouvidos dele as minhas desditas, fazendo depois os meus pedidos.
Eu não tinha nada a pedir,
especificamente. Olhei bem o
galo. Nem sabia ao certo onde
fica o ouvido dos galos. Assustado, temendo que boa coisa
não o aguardava, ele estava
apavorado. Seu olho redondo
me fixava, severamente, como
se soubesse a bisca que sou.
Uma das velhas, por experiência adquirida no ofício, lembrou a virilidade: "Peça a força, meu filho... tem mulher
querendo te atrapalhar..." Recusei a sugestão: não se mexe
em time que está ganhando.
Preferi pensar em abstrações,
felicidade, saúde, prosperidade, paciência, amor à pátria.
As velhas me urgiam: "Fale...
fale... Exu está esperando..."
Perdi a vergonha e murmurei
naquilo que julgava ser as ouças do galo uma abominável
exigência de minha carne. A
ave deu uma tremedeira e fez
suas necessidades: sabia que ia
morrer. Mandaram-me que segurasse com firmeza a presa,
mas olhasse para o lado.
Quando voltei à posição anterior, o galo continuava em
minhas mãos, mas sem a cabeça. A mocinha apanhou-o e foi
sangrá-lo em cima dos tridentes de ferro e da efígie de Exu,
que num canto escuro parecia
satisfeito com a cerimônia. As
velhas começaram a incentivá-lo com uma xingação cordial e bilíngue, usando termos
em nagô e português. Volta e
meia eu entendia uma frase:
"Anda, seu safado, entope esta
barriga... Coma, coma, seu
malandro... Encha bem esta
pança... E agora beba... Beba
até se entupir..." Exu ficou melado de sangue, bebendo e gozando, a pança farta. E abrindo-me os caminhos.
Saí de lá e me levaram a outra casa, a do Oxalá, pai de todos. Ali tudo era branco, calmo, repousante. Fizeram-me
acender duas velas. Por conta
própria, sem ninguém me pedir nada, agradeci aos santos.
Recomendei amigos e desafetos, amadas e desamadas, vivos e mortos. Inebriado pela
generosidade súbita, exagerei:
pedi ordem e progresso para o
Brasil.
Deixei as duas velas lambendo o espaço sagrado de Oxalá,
testemunhas de minha peregrinação ao reino encantado dos
orixás. Senti-me sujo de sangue, o cheiro das velas entrara
em minhas roupas, minha carne suava, como depois de uma
posse sofrida. Estava redimido
de velhas culpas e pronto para
adquirir novas.
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