São Paulo, sexta, 1 de maio de 1998

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ESTRÉIAS
Imamura resume a arte do cinema em "A Enguia"

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Não é de estranhar que parte da crítica presente a Cannes no ano passado tenha se surpreendido com a Palma de Ouro, dividida entre "A Enguia", de Shohei Imamura, e "Gosto de Cereja", de Abbas Kiarostami.
Era cinquentenário de Cannes e os jornalistas esperavam por um filme capaz de trazer uma revelação decisiva, uma nova tendência, uma palavra sobre os rumos do homem no fim do século.
O júri, sabiamente, dividiu o prêmio entre dois filmes que, embora muito diferentes entre si, se opõem ambos à concepção mundana do cinema que os festivais, com o tempo, tendem a adquirir.
Na verdade, existe um ponto em comum a ligá-los: ambos trazem personagens em situações extremas. O de "Gosto de Cereja" estava à beira do suicídio. Já Yamashida, o protagonista de "A Enguia", é o homem que assassina sua mulher após pilhá-la com outro, enquanto estava numa pescaria.
Oito anos depois, colocado em liberdade condicional, abre uma barbearia, num lugar isolado.
O desafio de "A Enguia" está em filmar uma história perfeitamente banal, com cenas do cotidiano, transformando essas coisas simples em momentos únicos.
Uma cena de amor (um dos grandes momentos do erotismo no cinema) e uma caminhada apressada de bicicleta rumo a um hospital, uma conversa na barbearia e a feitura de um jantar -cada um desses momentos possui uma força encantatória certa.
Em cada uma delas percebe-se a mão de um mestre absoluto do cinema: as cores e os tempos, os atores e as intensidades são perfeitamente controlados. Assim, Imamura consegue preencher o mundo sombrio de Yamashida e Keiko com cores e formas que infundem uma espécie de calor sereno a esses seres dilacerados.
O júri de Cannes-97 não fez uma escolha pelo impacto -por filmes que fazem sucesso imediato junto ao público-, mas pela permanência. Com efeito, "A Enguia" não se impõe pelo "grande tema humano" ou por uma "revolução formal", dessas que costumam se esgotar em dois ou três anos.
É, ao contrário, um desses filmes que contêm a tradição de sua arte e também sua modernidade.
Seu arrojo não está nos adornos -de que se passa-, em nenhuma espécie de maneirismo, na construção de personagens que servem para demonstrar uma idéia, mas nada mais do que isso.
"A Enguia" nos coloca em contato com personagens que podem ser belos e medonhos. São vivos, múltiplos, contraditórios, secretos, torturados. São, em síntese, como qualquer um. Quase banais. Tirar dessa banalidade um grande filme, exercer uma arte sem afetação, mas cheia de luz e vitalidade, esse é o trabalho apaixonante de Shohei Imamura.
Se Yamashida, Keiko e os outros interessam pelo que têm de único, por sua trajetória singular, também nos engajam pela pura e simples capacidade de mostrar um mundo que, sendo inteiramente particular, é também o de cada um de nós. "A Enguia" é um dos grandes momentos do cinema neste fim de século. Não é o prêmio em Cannes que o honra. Cannes é que deveria sentir-se honrado por tê-lo premiado.


Filme: A Enguia Produção: Japão, 1997 Direção: Shohei Imamura
Com: Koji Yakusho e Misa Shimizu Quando: a partir de hoje, no Cinesesc


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