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ESTRÉIAS
Imamura resume a arte do cinema em "A Enguia"
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Não é de estranhar que parte da
crítica presente a Cannes no ano
passado tenha se surpreendido
com a Palma de Ouro, dividida entre "A Enguia", de Shohei Imamura, e "Gosto de Cereja", de Abbas Kiarostami.
Era cinquentenário de Cannes e
os jornalistas esperavam por um
filme capaz de trazer uma revelação decisiva, uma nova tendência,
uma palavra sobre os rumos do
homem no fim do século.
O júri, sabiamente, dividiu o
prêmio entre dois filmes que, embora muito diferentes entre si, se
opõem ambos à concepção mundana do cinema que os festivais,
com o tempo, tendem a adquirir.
Na verdade, existe um ponto em
comum a ligá-los: ambos trazem
personagens em situações extremas. O de "Gosto de Cereja" estava à beira do suicídio. Já Yamashida, o protagonista de "A Enguia",
é o homem que assassina sua mulher após pilhá-la com outro, enquanto estava numa pescaria.
Oito anos depois, colocado em
liberdade condicional, abre uma
barbearia, num lugar isolado.
O desafio de "A Enguia" está em
filmar uma história perfeitamente
banal, com cenas do cotidiano,
transformando essas coisas simples em momentos únicos.
Uma cena de amor (um dos
grandes momentos do erotismo
no cinema) e uma caminhada
apressada de bicicleta rumo a um
hospital, uma conversa na barbearia e a feitura de um jantar -cada
um desses momentos possui uma
força encantatória certa.
Em cada uma delas percebe-se a
mão de um mestre absoluto do cinema: as cores e os tempos, os atores e as intensidades são perfeitamente controlados. Assim, Imamura consegue preencher o mundo sombrio de Yamashida e Keiko
com cores e formas que infundem
uma espécie de calor sereno a esses seres dilacerados.
O júri de Cannes-97 não fez uma
escolha pelo impacto -por filmes
que fazem sucesso imediato junto
ao público-, mas pela permanência. Com efeito, "A Enguia"
não se impõe pelo "grande tema
humano" ou por uma "revolução
formal", dessas que costumam se
esgotar em dois ou três anos.
É, ao contrário, um desses filmes
que contêm a tradição de sua arte e
também sua modernidade.
Seu arrojo não está nos adornos
-de que se passa-, em nenhuma
espécie de maneirismo, na construção de personagens que servem
para demonstrar uma idéia, mas
nada mais do que isso.
"A Enguia" nos coloca em contato com personagens que podem
ser belos e medonhos. São vivos,
múltiplos, contraditórios, secretos, torturados. São, em síntese,
como qualquer um. Quase banais.
Tirar dessa banalidade um grande
filme, exercer uma arte sem afetação, mas cheia de luz e vitalidade,
esse é o trabalho apaixonante de
Shohei Imamura.
Se Yamashida, Keiko e os outros
interessam pelo que têm de único,
por sua trajetória singular, também nos engajam pela pura e simples capacidade de mostrar um
mundo que, sendo inteiramente
particular, é também o de cada um
de nós. "A Enguia" é um dos
grandes momentos do cinema
neste fim de século. Não é o prêmio em Cannes que o honra. Cannes é que deveria sentir-se honrado por tê-lo premiado.
Filme: A Enguia
Produção: Japão, 1997
Direção: Shohei Imamura
Com: Koji Yakusho e Misa Shimizu
Quando: a partir de hoje, no Cinesesc
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