São Paulo, sexta, 1 de maio de 1998

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GASTRONOMIA
De comida da terra da gente a gente é que entende

NINA HORTA
especial para a Folha

Há pouco tempo apareceu um novo livro sobre bacalhau. "Cod: a Biography of the Fish That Changed the World" (Bacalhau: uma Biografia do Peixe Que Transformou o Mundo, Mark Kulansky, Alfred Knopf, 1997).
Aprendi lá o provérbio cubano: "Te conozco bacalao, aunque vengas desfrazao".
Uma das receitas que me chamou a atenção é de "bacalhua" ao leite de coco, que o autor extraiu e adaptou do nosso Rosamaria. Bacalhua? A mulher do bacalhau? Já me dá um medo das armadilhas, de outros erros como esse, que aceitaremos como cordeiros, ignorantes das línguas e costumes alheios.
Politicamente incorreto
Duas inglesas cozinheiras estão fazendo enorme sucesso na BBC. São gordotas, de meia-idade e andam numa motocicleta com "side car". Uma dirige e outra vai ao lado, divertindo-se à grande.
Odeiam dietas, comem e bebem de tudo. Não simpatizam com vegetarianos pois se cansaram de cozinhar legumes especiais para visitas e jamais, jamais um vegetariano lhes preparou um bife.
Um de seus livros chama-se "Two Fat Ladies" (Duas Senhoras Gordas). Quando um jornalista lhes perguntou se não achavam o título ofensivo e politicamente incorreto, responderam que não ligavam nem um pouco para "two" (duas), nada havia de errado com "fat" (gordas).
Já "ladies" as incomodava bastante por fazer lembrar banheiros femininos.
As receitas dos livros são ótimas, práticas, e descubro que uma das gordas morou até os cinco anos de idade no Brasil e escreve com saudade sobre o "paulista cuzcuz", substituindo a farinha de milho por sêmola marroquina, cuscuz marroquino. Louca, pensei com meus botões. Depois refleti que não custa experimentar. "Serendipity" é o nome da coisa.
Deve ficar ótimo um cuscuzinho de semolina com um molho carregado de tomate, camarão (ela usa sardinha), ervilhas, coentro.

Martabak frio
Mas que é o maior perigo escrever sobre comida de outra terra que não a sua, é. Comi, numa reunião de cozinheiros, uma refeição feita por uma indonésia. A entrada era um pastel idêntico ao nosso, mas frio. Perguntei as origens, me interessei e na volta tasquei uma crônica na Folha contando a história do martabak indonésio, comido frio.
Para quê?! Mita van Hien, indonésia de São Bernardo, queria me comer quente. O quê? Martabak comido frio? Onde é que eu estava com a cabeça?
Mas, Mita, eu comi... Nem pedi martabak e me trouxeram como dobrada à moda do Porto, frio...
Pois ela jamais me perdoou. Toda vez que viaja me manda polaroids de martabaks quentes, feitos na chapa, na vista do freguês, queimando a língua.
Comida da terra da gente só a gente entende.
Te conozco bacalao. Aunque vengas desfrazao.



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