São Paulo, quinta-feira, 01 de junho de 2000


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Índios de Ilhéus dizem pertencer à etnia considerada extinta e reivindicam peça do século 17
"Somos tupinambás, queremos o manto de volta"

Flávio Florido/Folha Imagem
Nivalda Amaral de Jesus, 67, líder da comunidade de Olivença (BA), vê manto tupinambá em SP



O objeto, que está na Mostra do Redescobrimento, em SP, integra acervo de museu dinamarquês


ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma modesta comunidade em Olivença (distrito de Ilhéus, no litoral sul da Bahia) está tentando mudar a história oficial do Brasil. São aproximadamente mil pessoas, a maioria lavradores, que não querem mais receber o tratamento de "caboclos" ou "pardos", como ocorre há pelo menos seis décadas. Dizem-se índios tupinambás -etnia que a literatura especializada julga extinta desde o século 17- e exigem, agora, que o governo os reconheça assim. Nos últimos 18 anos, discutiram a questão de identidade sem estardalhaço, quase às escondidas. Em janeiro, porém, sentiram-se maduros para torná-la pública e lançaram uma carta "à sociedade nacional", explicando o que desejam.
Convidados pela Folha, dois líderes da comunidade -Nivalda Amaral de Jesus, 67, e Aloísio Cunha Silva, 41- visitaram São Paulo no dia 20 de maio, um sábado. Domingo de manhã, foram à Mostra do Redescobrimento, que ocupa quatro edifícios do parque Ibirapuera.
Não conheceram praticamente nada da maior exposição de arte já promovida no país. Interessaram-se apenas em olhar o módulo indígena, com 600 peças.
A estrela, ali, é um manto tupinambá de penas vermelhas, que os holandeses tiraram de Pernambuco por volta de 1644 e que atualmente integra o acervo do Nationalmuseet, em Copenhague (Dinamarca). Não há, nas coleções etnográficas brasileiras, nenhum objeto do gênero. Os poucos de que se tem notícia encontram-se em instituições européias.
Dona Nivalda e Aloísio lembram-se de ouvir "parentes mais velhos" contarem histórias sobre os mantos sagrados dos tupinambás, mas não sabiam que a mostra exibe um exemplar.
Quando o avistaram dentro de uma redoma, protegida por um segurança, logo manifestaram a idéia de não permitir que a relíquia "retorne para o estrangeiro".
Na tarde do mesmo domingo, voltaram à Bahia, levando um catálogo da exposição. Uma semana depois, reuniram-se com a comunidade e chegaram a um consenso: irão pedir que o artefato permaneça no Brasil. "Estamos vivendo um processo de resgate cultural. Recuperar o manto significa trazer a memória de nossos ancestrais para mais perto", explica a pedagoga Núbia Batista da Silva, 30, outra líder local.
A comunidade ainda não resolveu de que modo solicitará a peça. "Vamos decidir em breve. Se precisar de abaixo-assinado, faremos. Se precisar de uma ação judicial, moveremos", diz Núbia.
Temor e resistência marcam a trajetória dos habitantes de Olivença. O distrito compõe-se de um pequeno centro urbano, que no verão se transforma em balneário turístico, e de 11 núcleos rurais, onde mora a maior parte dos que reivindicam a condição de tupinambá. A região toda soma quase 44 quilômetros quadrados.
Documentos do período colonial informam que, em 1680, missionários jesuítas fundaram uma aldeia indígena na área hoje ocupada pelo centro urbano de Olivença. Utilizando mão-de-obra nativa, ergueram lá uma igreja, a de Nossa Senhora da Escada.
Em 1756, os jesuítas são expulsos do país. O aldeamento ganha o título de vila e passa a abrigar também moradores brancos. No início do século 20, surge entre os índios um líder de nome Marcelino, que combate o domínio político dos coronéis. A imprensa da época o retrata como um bandido e o compara a Lampião.
Ele é preso em 1937. A partir daí, Olivença presencia uma expansão turística que, incentivada pelo coronelato, joga os indígenas para a zona rural, não raro com violência. A essa altura, jornais e cartórios da Bahia já não os tratam como índios. Preferem chamá-los de "caboclos" ou "pardos". A comunidade começa, então, a agir paradoxalmente. Por um lado, temendo perseguições, rejeita as origens. Por outro, ainda que de maneira discreta, vai preservando traços ancestrais.
Perde a língua tupi, converte-se ao catolicismo, mas não deixa de produzir artesanatos nem de se organizar territorialmente conforme regras herdadas dos antepassados. "O mais importante é que não abdica da memória índia, transmitida de uma geração a outra", destaca a antropóloga portuguesa Suzana Matos Viegas, estudiosa do assunto.
Em 1982, a comunidade organiza os primeiros debates sobre a retomada oficial do status indígena. A discussão, contudo, só ganha corpo no fim da década de 90, principalmente porque a atual legislação brasileira garante terras e assistência médico-educacional para os índios (muitos dos lavradores de Olivença trabalham em propriedades alheias e recebem apenas R$ 4 por dia).
Até agora, apesar das solicitações, o governo federal não iniciou o processo de reconhecimento do grupo. Povos indígenas de vários pontos do país, entretanto, já o considera tupinambá.
"Toda documentação dos séculos 16, 17 e 18 sobre os índios de Ilhéus identifica-os como tupiniquins", afirma o antropólogo José Augusto Laranjeiras Sampaio, professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). "Mas isso não impede que os moradores de Olivença julguem-se tupinambás. Eles se apóiam em relatos orais de seus avós e bisavós, enquanto os documentos disponíveis baseiam-se nas observações de colonizadores e viajantes brancos."


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