São Paulo, quinta-feira, 01 de junho de 2000


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CONTARDO CALLIGARIS
O que querem os baderneiros de Seattle, Washington e Praga?

Ultimamente , o Banco Mundial, o FMI e a Organização Mundial do Comércio excitam manifestantes variados e decididos. Foi o caso em Seattle e em Washington. Em setembro, o mesmo vai acontecer em Praga.
No começo, a agitação me surpreendeu. Perguntava-me: o que têm em comum ecologistas fantasiados de tartarugas, agricultores franceses defendendo o queijo feito com leite não-pasteurizado e sindicalistas americanos?
Se sentassem à mesma mesa, beberiam o quê: cerveja, leite de soja ou vinho tinto? Os interesses de cada grupo são às vezes inconciliáveis. Será que marcham juntos assim como as pessoas levam preces diversas para um mesmo santo? Ou será que existe uma espécie de inimigo comum?
Todos dizem que sim: a globalização. Mas por que ela seria o adversário de todos? A resposta está numa pequena história.
A partir dos anos 60, a democracia veio aparecendo como uma forma política, não ideal, mas menos perigosa do que outras. Ficou difícil acreditar que, com o suor das testas, o povo trabalhador destilaria milagrosamente vontades gerais e unânimes. Atrás das pretensas unanimidades populares se escondia quase sempre a prepotência de minorias fanáticas ou burocráticas.
Parecia, portanto, preferível aceitar o pacto democrático e se dobrar às exigências da maioria, mesmo que muitos achassem que ela podia ser burra, conservadora, manipulada a ponto de agir contra seus próprios interesses.
Claro, a virada se deu sem entusiasmo. Mas, nos resignando a este mal menor, descobríamos que a democracia não era só isso. Há uma outra face da democracia, concreta, direta, ou quase, que podemos inventar e da qual depende larga parte de nossas vidas.
Em suma, talvez a gente vote errado, talvez nossos representantes nem façam o que a gente tenta expressar votando. Mas, de qualquer forma, podemos praticar uma outra política democrática, bem mais eficaz e interessante. Ela não segue as formas instituídas da democracia, mas se afirma no cotidiano e na intimidade, transformando nossa maneira de viver, de sentir e de tecer relações com os outros.
Multiplicaram-se associações de gestão básica da vida: pais, mestres, moradores de bairro, consumidores, usuários de todo tipo. Democratizaram-se o lugar de trabalho, a mesa de família, a cama do casal e a dos amantes. Nunca, acredito, toleramos melhor as diferenças de idéias, de orientação sexual, de etnia, de fé, de estilo, e por aí vai.
Durante quatro décadas, num trabalho político incessante, duas, talvez três gerações tenham sido absorvidas pela tarefa de democratizar a vida de cada dia.
Mergulhados nas entranhas do social, mal levantamos a cabeça de vez em quando para escolher representantes, os quais, de qualquer forma, pareciam trabalhar num lugar pouco significativo para a democracia verdadeira -a cotidiana (isso nos EUA e na Europa, pois, no Brasil, até os anos 80, havia outras ótimas razões para cuidar apenas da democracia íntima).
Enfim, nossa vida política neste fim de século parecia correr tranquila entre um exercício desconfiado, cínico e um pouco leviano da democracia instituída e a paixão constante de aprofundar nossa democracia privada.
Ora, em Seattle, pessoas de lugares, gerações e interesses completamente diferentes foram às ruas por perceberem de repente que a democracia instituída está ameaçada.
Tomados pela preocupação de democratizar as pequenas decisões de nosso mundo privado, parece que não nos demos conta de que estamos entregando o controle das escolhas de fundo, globais. O déficit democrático maior não se situa mais na sala ou no quarto, mas concerne às grandes diretivas econômicas, políticas e sociais.
Como? Por quê? Não houve nenhum golpe militar às escondidas. Nossos representantes não estão nos traindo. Mas acontece que eles apitam cada vez menos e nós também. Esta é a mensagem de Seattle: você se acostumou a decidir quase tudo democraticamente, desde as leis até o programa que veremos juntos na TV hoje à noite. Ora, cuidado, muitas escolhas essenciais para nossa vida não passam mais por nossos parlamentos. Portanto, não passam por nós.
Politicamente, a globalização provoca, no mínimo, isso: há pólos de decisão que estão fora do alcance de nosso exercício democrático. Por exemplo -lamento lançar mão de um chavão-, os conselhos de administração das grandes corporações.
Foi a descoberta deste déficit democrático que levou um exército "Brancaleone" a descer pelas ruas de Seattle, de Washington, e aí vem Praga. Você acha que são preocupações longínquas? Que nossos parlamentos ainda decidem tudo o que importa? Pode ser. Mas considere este dado interessante: em 1997, dos cem maiores orçamentos do mundo, 49 eram estados nacionais, 51 eram corporações.
PS: Neste contexto, vale a pena ler "Models of Democracy", de David Held. A idéia de "déficit de democracia" vem dele. O mesmo Held, com outros, acaba de publicar "Global Transformations: Politics, Economics and Culture", que é uma excelente apresentação dos prós e contras da globalização.
E-mail - ccalligari@uol.com.br

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