|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
O que querem os baderneiros de Seattle, Washington e Praga?
Ultimamente , o Banco
Mundial, o FMI e a Organização Mundial do Comércio excitam manifestantes variados e decididos. Foi o caso em Seattle e em
Washington. Em setembro, o
mesmo vai acontecer em Praga.
No começo, a agitação me surpreendeu. Perguntava-me: o que
têm em comum ecologistas fantasiados de tartarugas, agricultores
franceses defendendo o queijo feito com leite não-pasteurizado e
sindicalistas americanos?
Se sentassem à mesma mesa,
beberiam o quê: cerveja, leite de
soja ou vinho tinto? Os interesses
de cada grupo são às vezes inconciliáveis. Será que marcham juntos assim como as pessoas levam
preces diversas para um mesmo
santo? Ou será que existe uma espécie de inimigo comum?
Todos dizem que sim: a globalização. Mas por que ela seria o adversário de todos? A resposta está
numa pequena história.
A partir dos anos 60, a democracia veio aparecendo como
uma forma política, não ideal,
mas menos perigosa do que outras. Ficou difícil acreditar que,
com o suor das testas, o povo trabalhador destilaria milagrosamente vontades gerais e unânimes. Atrás das pretensas unanimidades populares se escondia
quase sempre a prepotência de
minorias fanáticas ou burocráticas.
Parecia, portanto, preferível
aceitar o pacto democrático e se
dobrar às exigências da maioria,
mesmo que muitos achassem que
ela podia ser burra, conservadora, manipulada a ponto de agir
contra seus próprios interesses.
Claro, a virada se deu sem entusiasmo. Mas, nos resignando a este mal menor, descobríamos que
a democracia não era só isso. Há
uma outra face da democracia,
concreta, direta, ou quase, que
podemos inventar e da qual depende larga parte de nossas vidas.
Em suma, talvez a gente vote errado, talvez nossos representantes
nem façam o que a gente tenta
expressar votando. Mas, de qualquer forma, podemos praticar
uma outra política democrática,
bem mais eficaz e interessante.
Ela não segue as formas instituídas da democracia, mas se afirma
no cotidiano e na intimidade,
transformando nossa maneira de
viver, de sentir e de tecer relações
com os outros.
Multiplicaram-se associações
de gestão básica da vida: pais,
mestres, moradores de bairro,
consumidores, usuários de todo
tipo. Democratizaram-se o lugar
de trabalho, a mesa de família, a
cama do casal e a dos amantes.
Nunca, acredito, toleramos melhor as diferenças de idéias, de
orientação sexual, de etnia, de fé,
de estilo, e por aí vai.
Durante quatro décadas, num
trabalho político incessante, duas,
talvez três gerações tenham sido
absorvidas pela tarefa de democratizar a vida de cada dia.
Mergulhados nas entranhas do
social, mal levantamos a cabeça
de vez em quando para escolher
representantes, os quais, de qualquer forma, pareciam trabalhar
num lugar pouco significativo para a democracia verdadeira -a
cotidiana (isso nos EUA e na Europa, pois, no Brasil, até os anos
80, havia outras ótimas razões
para cuidar apenas da democracia íntima).
Enfim, nossa vida política neste
fim de século parecia correr tranquila entre um exercício desconfiado, cínico e um pouco leviano
da democracia instituída e a paixão constante de aprofundar nossa democracia privada.
Ora, em Seattle, pessoas de lugares, gerações e interesses completamente diferentes foram às
ruas por perceberem de repente
que a democracia instituída está
ameaçada.
Tomados pela preocupação de
democratizar as pequenas decisões de nosso mundo privado, parece que não nos demos conta de
que estamos entregando o controle das escolhas de fundo, globais.
O déficit democrático maior não
se situa mais na sala ou no quarto, mas concerne às grandes diretivas econômicas, políticas e sociais.
Como? Por quê? Não houve nenhum golpe militar às escondidas. Nossos representantes não
estão nos traindo. Mas acontece
que eles apitam cada vez menos e
nós também. Esta é a mensagem
de Seattle: você se acostumou a
decidir quase tudo democraticamente, desde as leis até o programa que veremos juntos na TV hoje à noite. Ora, cuidado, muitas
escolhas essenciais para nossa vida não passam mais por nossos
parlamentos. Portanto, não passam por nós.
Politicamente, a globalização
provoca, no mínimo, isso: há pólos de decisão que estão fora do
alcance de nosso exercício democrático. Por exemplo -lamento
lançar mão de um chavão-, os
conselhos de administração das
grandes corporações.
Foi a descoberta deste déficit democrático que levou um exército
"Brancaleone" a descer pelas ruas
de Seattle, de Washington, e aí
vem Praga. Você acha que são
preocupações longínquas? Que
nossos parlamentos ainda decidem tudo o que importa? Pode
ser. Mas considere este dado interessante: em 1997, dos cem maiores orçamentos do mundo, 49
eram estados nacionais, 51 eram
corporações.
PS: Neste contexto, vale a pena
ler "Models of Democracy", de
David Held. A idéia de "déficit de
democracia" vem dele. O mesmo
Held, com outros, acaba de publicar "Global Transformations: Politics, Economics and Culture",
que é uma excelente apresentação dos prós e contras da globalização.
E-mail - ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Panorâmica: Rod Stewart está recuperado de cirurgia Próximo Texto: Literatura: Revistas constroem "berço" da nova poesia Índice
|