São Paulo, terça-feira, 01 de junho de 2004

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FERNANDO BONASSI

Descansem em paz

Elas telefonarão aos seus algozes, agendarão compromissos perigosos, soltarão frases indecentes, ordenarão que as esperem, desejarão ser amadas, pedirão o que não podem ter, instigarão animais selvagens. Eles violarão os códigos, trairão os votos, inventarão pecados, ficarão prostrados, estarão cismados. Pode ser que estejam exaustos, podem até esperar sossegados. Alguns se aproximarão com cautelas, outros correrão de medo.
Serão lobos solitários, cachorros sem vergonha, cadelas no cio, gatos escaldados, ratos de esgoto, cobras criadas. Para o bem e para o mal, serão inocentes disso tudo quando cumprirem a pena. O de todos já está guardado pelo inominável.
É previsível. É provável.
Vai ser um acaso, um drama, um destino. Algumas nem perceberão. Outros agirão em seu benefício. Não pensarão duas vezes antes de acelerar mais um pouco, mais um metro, mais um litro. Encherão o saco, abrirão as pernas, deitarão tranqüilos. Jurarão que é para sempre, diante de todas as evidências. Apostarão na própria sorte, cheios de certezas. Perderão tudo, a propósito de uma urgência. Brincarão com fogo, com armas de fogo, com o fogo do inferno. Provocarão o ódio, fazendo arruaça. Apertarão gatilhos cumprindo promessas. Investirão dinheiro, visando lucro. Pouparão a si e aos outros de certos assuntos. Gastarão o que não têm, nem terão como gastar. Amaldiçoarão os pais, cientes de sua velhice. Beijarão as mulheres, convictos que irão revê-las. Baterão nos filhos, certos de lhes dar educação. Elas falarão com as paredes de suas casas, estarão sozinhas nas varandas, pedirão a Deus nas alturas. Serão ateus, católicos/protestantes, muçulmanos/judeus. Serão pretos, brancos e amarelos; bacanas, otários e pés-de-chinelo.
Será democrático. E definitivo. À revelia.
Vão estar preocupadas, como se tivessem adivinhado. Vão estar ocupadas, como se nem ligassem. Vão estar arrumadas, como se fosse uma festa. Vão estar ansiosas por um momento. Será indolor, atroz, um instante, um suspiro, um lamento. Poderá demorar horas. Poderá suportar tudo. Ninguém pode garantir... Mas é certo como a sexta-feira vem chegando.
Alguns a procurarão. Outras a encontrarão depois dos avisos. Haverá mapas e indicações muito claras durante o trajeto. Todos os percursos desembocam na sua boca afiada. Pode haver os que se percam por desvios. Poderá haver alguns atrasos. Haverá os que seguirão direto. Alguns darão de frente. Poderão perder os dentes. Muitos cairão de costas, outros ficarão cegos. Que a encontrarão, de todo modo, é claro.
É possível que haja culpa, que seja a infelicidade mais pura, a verdade mais aguda, a piada mais sem graça.
Muitos sumirão no pó onde apareceram. Alguns fertilizarão o chão em que pereceram. Escreverão bilhetes, mandarão recados, deixarão heranças. Muitas serão por besteira: "Um tíquete, um passe, um trocadinho"; outras valerão fortunas, para a alegria dos agentes funerários, maquiadores de cadáveres, floristas, inimigos e parentes. As línguas não caberão de saliva, maledicências, sangue e elogios. Haverá homenagens e almoços. Ignorância e alvoroço. Poderá envolver agentes secretos, masoquistas passivos, gente de bem. Poderão ser colhidos na cama, na moto, num trem. Serão desmembrados, furados, queimados. Punhos serão cerrados, razões serão cobradas, ferros serão erguidos. Brigarão por migalhas. Cortarão os pulsos. Abaixarão as calças. Espetarão com facas, rolarão de escadas, voarão nos ares.
Uma boa porrada também pode fazer o serviço.
Poderão estar limpos, deverão ser honestos, não terão alternativa. Morderão os lábios, aplicarão nas veias, farão besteiras. Poderão usar mágoas, para afogar. Poderão usar advogados, para ameaçar. Poderão usar capangas, para amolecer. Poderão usar drogas, para esquecer. Poderão usar fotografias, para lembrar. Poderão usar alarmes, para evitar -e nem assim!
Serão decapitadas, enforcadas, molestadas, consumidas. Atropelados, enganados, esganados, desnutridos. Passearão por perto de abismos, tocarão em feridas ardentes, desafiarão as leis da gravidade, os limites de velocidade, a validade dos freios, a tensão dos arreios! Tentarão cortar caminho, levar vantagem, ganhar um tempo. Serão xingados de vários nomes, chamados inúmeras vezes, chorados uma hora ou outra.
Não caberá recurso além do espanto. Ainda assim eles atravessarão nas faixas, subirão nas guias, pularão os muros. Atrairão polícia, ficarão quietinhos, sairão à francesa. Nada indica agora, a qualquer um deles, que serão os próximos... Então meterão o bedelho, darão as caras congestionadas, as múltiplas faces estapeadas! Humilharão enjeitados, cometerão loucuras, estarão apaixonados. Exigirão desculpas, pedirão propinas, farão justiça. Será com as próprias mãos. Será vontade alheia.
Esnobarão advertências, invejarão títulos, abandonarão valores. Serão jovens, escravos, senhores. Severos, suaves, doutores. Algumas famílias desaparecerão. Outras deixarão sementes. Acontecerá de ser por pouco. Sempre. Só se distrairão por um segundo. Apenas um segundo é o suficiente. Um segundo insuficiente nesta vida. E pronto...
Aproximadamente 45 pessoas terão morte violenta nesta cidade no próximo final de semana.


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