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FERNANDO BONASSI
Descansem em paz
Elas telefonarão aos seus algozes, agendarão compromissos perigosos, soltarão frases
indecentes, ordenarão que as esperem, desejarão ser amadas, pedirão o que não podem ter, instigarão animais selvagens. Eles violarão os códigos, trairão os votos,
inventarão pecados, ficarão prostrados, estarão cismados. Pode ser
que estejam exaustos, podem até
esperar sossegados. Alguns se
aproximarão com cautelas, outros correrão de medo.
Serão lobos solitários, cachorros
sem vergonha, cadelas no cio, gatos escaldados, ratos de esgoto, cobras criadas. Para o bem e para o
mal, serão inocentes disso tudo
quando cumprirem a pena. O de
todos já está guardado pelo inominável.
É previsível. É provável.
Vai ser um acaso, um drama,
um destino. Algumas nem perceberão. Outros agirão em seu benefício. Não pensarão duas vezes
antes de acelerar mais um pouco,
mais um metro, mais um litro.
Encherão o saco, abrirão as pernas, deitarão tranqüilos. Jurarão
que é para sempre, diante de todas as evidências. Apostarão na
própria sorte, cheios de certezas.
Perderão tudo, a propósito de
uma urgência. Brincarão com fogo, com armas de fogo, com o fogo
do inferno. Provocarão o ódio, fazendo arruaça. Apertarão gatilhos cumprindo promessas. Investirão dinheiro, visando lucro.
Pouparão a si e aos outros de certos assuntos. Gastarão o que não
têm, nem terão como gastar.
Amaldiçoarão os pais, cientes de
sua velhice. Beijarão as mulheres,
convictos que irão revê-las. Baterão nos filhos, certos de lhes dar
educação. Elas falarão com as paredes de suas casas, estarão sozinhas nas varandas, pedirão a
Deus nas alturas. Serão ateus, católicos/protestantes, muçulmanos/judeus. Serão pretos, brancos
e amarelos; bacanas, otários e
pés-de-chinelo.
Será democrático. E definitivo.
À revelia.
Vão estar preocupadas, como se
tivessem adivinhado. Vão estar
ocupadas, como se nem ligassem.
Vão estar arrumadas, como se
fosse uma festa. Vão estar ansiosas por um momento. Será indolor, atroz, um instante, um suspiro, um lamento. Poderá demorar
horas. Poderá suportar tudo. Ninguém pode garantir... Mas é certo
como a sexta-feira vem chegando.
Alguns a procurarão. Outras a
encontrarão depois dos avisos.
Haverá mapas e indicações muito
claras durante o trajeto. Todos os
percursos desembocam na sua
boca afiada. Pode haver os que se
percam por desvios. Poderá haver
alguns atrasos. Haverá os que seguirão direto. Alguns darão de
frente. Poderão perder os dentes.
Muitos cairão de costas, outros ficarão cegos. Que a encontrarão,
de todo modo, é claro.
É possível que haja culpa, que
seja a infelicidade mais pura, a
verdade mais aguda, a piada
mais sem graça.
Muitos sumirão no pó onde
apareceram. Alguns fertilizarão o
chão em que pereceram. Escreverão bilhetes, mandarão recados,
deixarão heranças. Muitas serão
por besteira: "Um tíquete, um
passe, um trocadinho"; outras valerão fortunas, para a alegria dos
agentes funerários, maquiadores
de cadáveres, floristas, inimigos e
parentes. As línguas não caberão
de saliva, maledicências, sangue e
elogios. Haverá homenagens e almoços. Ignorância e alvoroço. Poderá envolver agentes secretos,
masoquistas passivos, gente de
bem. Poderão ser colhidos na cama, na moto, num trem. Serão
desmembrados, furados, queimados. Punhos serão cerrados, razões serão cobradas, ferros serão
erguidos. Brigarão por migalhas.
Cortarão os pulsos. Abaixarão as
calças. Espetarão com facas, rolarão de escadas, voarão nos ares.
Uma boa porrada também pode fazer o serviço.
Poderão estar limpos, deverão
ser honestos, não terão alternativa. Morderão os lábios, aplicarão
nas veias, farão besteiras. Poderão usar mágoas, para afogar. Poderão usar advogados, para
ameaçar. Poderão usar capangas,
para amolecer. Poderão usar drogas, para esquecer. Poderão usar
fotografias, para lembrar. Poderão usar alarmes, para evitar -e
nem assim!
Serão decapitadas, enforcadas,
molestadas, consumidas. Atropelados, enganados, esganados, desnutridos. Passearão por perto de
abismos, tocarão em feridas ardentes, desafiarão as leis da gravidade, os limites de velocidade, a
validade dos freios, a tensão dos
arreios! Tentarão cortar caminho, levar vantagem, ganhar um
tempo. Serão xingados de vários
nomes, chamados inúmeras vezes, chorados uma hora ou outra.
Não caberá recurso além do espanto. Ainda assim eles atravessarão nas faixas, subirão nas
guias, pularão os muros. Atrairão
polícia, ficarão quietinhos, sairão
à francesa. Nada indica agora, a
qualquer um deles, que serão os
próximos... Então meterão o bedelho, darão as caras congestionadas, as múltiplas faces estapeadas! Humilharão enjeitados, cometerão loucuras, estarão apaixonados. Exigirão desculpas, pedirão propinas, farão justiça. Será
com as próprias mãos. Será vontade alheia.
Esnobarão advertências, invejarão títulos, abandonarão valores. Serão jovens, escravos, senhores. Severos, suaves, doutores. Algumas famílias desaparecerão.
Outras deixarão sementes. Acontecerá de ser por pouco. Sempre.
Só se distrairão por um segundo.
Apenas um segundo é o suficiente. Um segundo insuficiente nesta
vida. E pronto...
Aproximadamente 45 pessoas
terão morte violenta nesta cidade
no próximo final de semana.
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