São Paulo, quarta-feira, 01 de junho de 2005

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Festa literária de Parati homenageia a escritora e lança material inédito e suas últimas anotações

Clarice sem mistérios

arquivo pessoal de Paulo Gurgel Valente
Clarice Lispector nos anos 50, em Washington


JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL

Conta Olga Borelli, amiga íntima da escritora nos últimos anos de vida, que, já no hospital, na véspera da morte, uma Clarice Lispector pálida e frágil tentou caminhar até a porta para dali retirar-se. Deparou-se com o corpo de uma enfermeira, que em movimentos simultâneos barrou sua passagem e a amparou. Em desespero, ainda que rouca, gritou: "Você matou meu personagem!".
Em outros dias desse dezembro de 1977, dias mais calmos ainda que de doença, acometida pelo câncer, ficava deitada na cama do Hospital da Lagoa, no Rio, e se aborrecia quando alguém a reverenciava. Um "bom dia, escritora" bastava para arrancar-lhe palavras, estas mais serenas do que as do episódio anterior, embora igualmente contundentes: "Pelo amor de Deus, não me considere uma escritora, e sim uma pessoa".
Destas e de outras contradições, destas e de outras anedotas, povoou-se o universo de mistérios da mulher nascida na Ucrânia em 1920 e migrada ao Brasil aos dois meses de idade. De tudo isso, também, se povoará a edição da 3ª Festa Literária Internacional de Parati, a se realizar em julho, que homenageia a escritora.
Mistérios que ora vinham de suas palavras fortes, publicadas em seus mais de 20 livros ou anotadas em papéis quaisquer, ora partiam dos que se encantavam por seus olhos amendoados. Ao lado, vemos a última anotação de Lispector, pertencente ao arquivo pessoal de seu filho, Paulo Gurgel Valente. A letra tremida, a escrita desordenada, talvez sejam fruto das queimaduras fortes que sofrera dez anos antes, num incêndio que lhe desfigurara a casa e a mão direita. Talvez derivem do conteúdo: uma Lispector angustiada, cuja "alma tem o imaterial peso da solidão no meio de outros".
Este documento e as fotos inéditas publicadas com exclusividade pela Folha figurarão no livro "Aprendendo a Viver", organizado por Tereza Montero e Luiz Ferreira, que será lançado no evento. Também terá lançamento "Clarice Lispector: Outros Escritos", organizado por Montero e Licia Manzo, ambos pela Rocco.
Este último apresenta inéditos de Lispector, entre contos, reportagens e uma conferência sobre "Literatura e Magia", proferida em um Congresso de Bruxaria na Colômbia, em 1955. Procura, segundo Montero, "apresentar um outro lado da escritora, desses outros textos, não exatamente literários, que um autor inevitavelmente produz ao longo da vida".

"Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros"

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