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Que tal navegar por mares nunca navegados?
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Leio, no momento, uma biografia de Vasco da Gama, escrita por Geneviève Buchon.
Impressiona-me a importância
do mar na vida do menino que
pulsava com o movimento dos
barcos.
Um outro aspecto que me impressiona são as riquezas que
os portugueses iam acumulando ao longo de suas conquistas
e que eram percebidas apenas
de forma fragmentária pelos
embaixadores que frequentavam seus palácios.
Objetos e animais exóticos
eram um sinal de que algo estava acontecendo com os portugueses, mas não se formava
um quadro completo na mente
dos observadores. Ou, como se
diz na gíria carioca, "não caía
a ficha", acendendo a centelha
da consciência sobre a dimensão da aventura colonial.
Cinco séculos depois, os portugueses fazem uma gigantesca exposição em Lisboa e os
oceanos voltam a ser o tema
essencial. Representam o futuro do planeta, e em torno dessa
perspectiva os portugueses
construíram um acontecimento superior a qualquer outro
feito em países ricos, reproduzindo, de uma certa maneira,
sua supremacia na aposta marítima, uma das maneiras de
compensar suas limitações terrestres.
A mensagem dos portugueses, que poderia empolgar o
campo comum -fala-se tanto
na comunidade luso-brasileira-, parece não ter sido bem
aproveitada pelo Brasil. Fernando Henrique (um nome
composto de reis e navegadores) prestou seu tributo à estátua de Cabral, mas até o cachorro vira-lata latiu durante
seu discurso contra a falta de
imaginação do governo brasileiro.
O momento de desfechar
uma ação internacional pelos
oceanos poderia produzir um
vínculo poderoso entre as nações de expressão portuguesa,
uma agenda própria para dialogar com o planeta.
No entanto, ficamos presos a
vírgulas, grafias e acentos, tentando agarrar um idioma que
se move e ignorando as possibilidades de construir um futuro a partir desse mar que nos
fundiu num momento da história comum.
Nada tenho contra as viagens do presidente. Mas essa
revelou para mim como a dimensão ecológica ainda está
um pouco reduzida em nosso
horizonte diplomático.
Os portugueses voltaram ao
ponto de partida, reescreveram
seu roteiro de inserção no
mundo. Os portugueses mergulharam no próprio passado e
reescreveram seu roteiro com a
mesma audácia do menino
Vasco da Gama sonhando com
o caminho para as Índias. Faltou o parceiro natural, o grande país que emergiu da aventura primordial.
O interessante é que estamos
em plena campanha presidencial, e nenhum dos candidatos
vislumbrou a exposição portuguesa como uma alavanca.
Sei que será uma campanha
milionária, com salários estratosféricos, mas escapa totalmente aos marqueteiros essa
nova realidade globalizada,
na qual muitas vezes é preciso
sair do país para criar um fato
aqui dentro.
Dirão: com a seca dizimando
rebanhos e provocando saques
no Nordeste, não seria uma
imprudência se deslocar para
Lisboa e lançar o foco sobre os
oceanos?
Acontece que o tema oceano
como futuro do planeta responde por si mesmo à crítica
baseada na seca do Nordeste.
Inúmeros têm sido os debates
sobre a dessalinização da água
do mar. Já demonstramos aqui
mesmo que ela não é uma solução mágica, mas pelo menos
contribui para situar a perspectiva do combate à seca num
plano um pouco mais ambicioso do que frentes temporárias
de trabalho, cestas básicas,
medidas que colocam as classes dominantes no mesmo círculo de impotência que nos
aprisiona desde os tempos do
Império.
A campanha presidencial vai
escolher os dirigentes do século
21. Se nos sequestra a dimensão do futuro, as comemorações dos 500 anos do Descobrimento se farão num clima melancólico de bate-boca, sem
nenhuma perspectiva de dobrar simbolicamente o Cabo
da Boa Esperança.
Profissionais de campanha
debruçados sobre a pesquisa
sempre encontrarão um traço
desanimador se lançarem a
questão dos oceanos. Têm base
concreta para afirmar que o
povo não quer saber desses temas.
No entanto, as pesquisas e a
moderna técnica de organizar
uma campanha política omitem um aspecto pouco desenvolvido: como o povo reagiria
se se oferecer também um horizonte de longo prazo, um projeto que transcenda uma simples campanha eleitoral e se
afirme como objetivo permanente do país.
Parodiando a canção popular, sei que assim procedendo
me exponho ao desprezo de todos vocês, que trabalham com
números e estão preocupados
com votos que resultem numa
vitória concreta em 4 de outubro.
De fato, se considerarmos as
pesquisas, veremos que o povo
não pode ser ainda um elemento de advertência para o
imediatismo que domina nosso cenário político.
Posso apenas apelar para os
cachorros: em Lisboa, um vira-lata latiu furioso para o discurso de Fernando Henrique;
em Brasília, um cão furioso
rasgou a calça de um senador.
Aonde chegaremos nessa escalada? Os marqueteiros não
pensaram ainda nessa possibilidade de nos indisporem para
sempre com nossos melhores
amigos.
Do jeito que as coisas caminham, não tenho condições
morais para dizer que sou deputado para meu próprio cachorro, que me espera com
uma festa cada vez que volto
para casa.
A comunidade luso-brasileira vive um momento especial
sob vários aspectos. É hora da
ofensiva para a independência
do Timor Leste e para libertar
o líder Xanana Gusmão; é hora de iniciar uma ofensiva planetária pela salvação dos
oceanos.
A estátua de Pedro Álvares
Cabral, tudo bem, merece um
discurso. Mas, pelo que estou
conhecendo de Vasco da Gama
e dos outros navegadores de
seu tempo, pressinto um certo
desconforto em seu túmulo.
Num mundo em que outros
povos se aventuram nos tenebrosos mares virtuais, os luso-brasileiros poderiam achar
algo melhor do que navegar
nas mesmas caravelas.
Faço campanhas no Brasil
desde menino. Depois da redemocratização, as fiz como candidato. Em nenhuma delas faltaram vira-latas e bêbados. Se
sobrarem apenas eles nas ruas,
é preciso, pelo menos, encontrar um discurso que nos permita uma saída digna.
Os bêbados, então, nem quero pensar. No final da campanha, poderemos apresentar
uma seleção de frases inspiradas pelos slogans dos marqueteiros. Aquela mão aberta,
lembram-se? Já ouvi horrores
sobre ela.
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