São Paulo, segunda, 1 de junho de 1998

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Que tal navegar por mares nunca navegados?

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

Leio, no momento, uma biografia de Vasco da Gama, escrita por Geneviève Buchon. Impressiona-me a importância do mar na vida do menino que pulsava com o movimento dos barcos.
Um outro aspecto que me impressiona são as riquezas que os portugueses iam acumulando ao longo de suas conquistas e que eram percebidas apenas de forma fragmentária pelos embaixadores que frequentavam seus palácios.
Objetos e animais exóticos eram um sinal de que algo estava acontecendo com os portugueses, mas não se formava um quadro completo na mente dos observadores. Ou, como se diz na gíria carioca, "não caía a ficha", acendendo a centelha da consciência sobre a dimensão da aventura colonial.
Cinco séculos depois, os portugueses fazem uma gigantesca exposição em Lisboa e os oceanos voltam a ser o tema essencial. Representam o futuro do planeta, e em torno dessa perspectiva os portugueses construíram um acontecimento superior a qualquer outro feito em países ricos, reproduzindo, de uma certa maneira, sua supremacia na aposta marítima, uma das maneiras de compensar suas limitações terrestres.
A mensagem dos portugueses, que poderia empolgar o campo comum -fala-se tanto na comunidade luso-brasileira-, parece não ter sido bem aproveitada pelo Brasil. Fernando Henrique (um nome composto de reis e navegadores) prestou seu tributo à estátua de Cabral, mas até o cachorro vira-lata latiu durante seu discurso contra a falta de imaginação do governo brasileiro.
O momento de desfechar uma ação internacional pelos oceanos poderia produzir um vínculo poderoso entre as nações de expressão portuguesa, uma agenda própria para dialogar com o planeta.
No entanto, ficamos presos a vírgulas, grafias e acentos, tentando agarrar um idioma que se move e ignorando as possibilidades de construir um futuro a partir desse mar que nos fundiu num momento da história comum.
Nada tenho contra as viagens do presidente. Mas essa revelou para mim como a dimensão ecológica ainda está um pouco reduzida em nosso horizonte diplomático.
Os portugueses voltaram ao ponto de partida, reescreveram seu roteiro de inserção no mundo. Os portugueses mergulharam no próprio passado e reescreveram seu roteiro com a mesma audácia do menino Vasco da Gama sonhando com o caminho para as Índias. Faltou o parceiro natural, o grande país que emergiu da aventura primordial.
O interessante é que estamos em plena campanha presidencial, e nenhum dos candidatos vislumbrou a exposição portuguesa como uma alavanca.
Sei que será uma campanha milionária, com salários estratosféricos, mas escapa totalmente aos marqueteiros essa nova realidade globalizada, na qual muitas vezes é preciso sair do país para criar um fato aqui dentro.
Dirão: com a seca dizimando rebanhos e provocando saques no Nordeste, não seria uma imprudência se deslocar para Lisboa e lançar o foco sobre os oceanos?
Acontece que o tema oceano como futuro do planeta responde por si mesmo à crítica baseada na seca do Nordeste.
Inúmeros têm sido os debates sobre a dessalinização da água do mar. Já demonstramos aqui mesmo que ela não é uma solução mágica, mas pelo menos contribui para situar a perspectiva do combate à seca num plano um pouco mais ambicioso do que frentes temporárias de trabalho, cestas básicas, medidas que colocam as classes dominantes no mesmo círculo de impotência que nos aprisiona desde os tempos do Império.
A campanha presidencial vai escolher os dirigentes do século 21. Se nos sequestra a dimensão do futuro, as comemorações dos 500 anos do Descobrimento se farão num clima melancólico de bate-boca, sem nenhuma perspectiva de dobrar simbolicamente o Cabo da Boa Esperança.
Profissionais de campanha debruçados sobre a pesquisa sempre encontrarão um traço desanimador se lançarem a questão dos oceanos. Têm base concreta para afirmar que o povo não quer saber desses temas.
No entanto, as pesquisas e a moderna técnica de organizar uma campanha política omitem um aspecto pouco desenvolvido: como o povo reagiria se se oferecer também um horizonte de longo prazo, um projeto que transcenda uma simples campanha eleitoral e se afirme como objetivo permanente do país.
Parodiando a canção popular, sei que assim procedendo me exponho ao desprezo de todos vocês, que trabalham com números e estão preocupados com votos que resultem numa vitória concreta em 4 de outubro.
De fato, se considerarmos as pesquisas, veremos que o povo não pode ser ainda um elemento de advertência para o imediatismo que domina nosso cenário político.
Posso apenas apelar para os cachorros: em Lisboa, um vira-lata latiu furioso para o discurso de Fernando Henrique; em Brasília, um cão furioso rasgou a calça de um senador.
Aonde chegaremos nessa escalada? Os marqueteiros não pensaram ainda nessa possibilidade de nos indisporem para sempre com nossos melhores amigos.
Do jeito que as coisas caminham, não tenho condições morais para dizer que sou deputado para meu próprio cachorro, que me espera com uma festa cada vez que volto para casa.
A comunidade luso-brasileira vive um momento especial sob vários aspectos. É hora da ofensiva para a independência do Timor Leste e para libertar o líder Xanana Gusmão; é hora de iniciar uma ofensiva planetária pela salvação dos oceanos.
A estátua de Pedro Álvares Cabral, tudo bem, merece um discurso. Mas, pelo que estou conhecendo de Vasco da Gama e dos outros navegadores de seu tempo, pressinto um certo desconforto em seu túmulo.
Num mundo em que outros povos se aventuram nos tenebrosos mares virtuais, os luso-brasileiros poderiam achar algo melhor do que navegar nas mesmas caravelas.
Faço campanhas no Brasil desde menino. Depois da redemocratização, as fiz como candidato. Em nenhuma delas faltaram vira-latas e bêbados. Se sobrarem apenas eles nas ruas, é preciso, pelo menos, encontrar um discurso que nos permita uma saída digna.
Os bêbados, então, nem quero pensar. No final da campanha, poderemos apresentar uma seleção de frases inspiradas pelos slogans dos marqueteiros. Aquela mão aberta, lembram-se? Já ouvi horrores sobre ela.



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