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CRÍTICA LITERATURA
Kadaré narra o mistério insolúvel do amor
Em "O Acidente", a magnífica narrativa do autor descreve relação entre casal marcada por conflitos políticos
ALCINO LEITE NETO
EDITOR DA PUBLIFOLHA
"O Acidente", de Ismail
Kadaré, é uma armadilha para o leitor. Uma extraordinária armadilha literária.
O livro começa à maneira
de uma novela policial. A
morte misteriosa de um casal
de amantes albaneses num
acidente de estrada engendra uma investigação repleta
de suspense.
Dura nove breves capítulos e ocupa a primeira parte
da obra.
O suspense, então, "é suspenso", para dar início à segunda parte, uma espécie de
narrativa dentro da narrativa, elaborada por um dos investigadores.
Em 13 capítulos, o investigador-autor reconstitui a vida do casal nas últimas 40 semanas antes das mortes, como se o motivo do intrigante
acidente ultrapassasse a racionalidade da enquete policial e devesse ser descoberto
por uma outra linguagem.
Agora, o que interessa não
são exatamente os detalhes
do acidente, mas, sim, a descrição do labirinto amoroso
que envolve os dois amantes,
Bessfort Y. e Rovena St.
O leitor, a princípio, se decepciona com a mudança. É
como se ele saísse de uma
pista de corrida e devesse caminhar num quarto escuro.
O fascínio, entretanto, retorna, à medida que a segunda parte avança e atravessa a
magnífica narrativa engendrada por Kadaré, na qual tudo vai se implicando de maneira espantosa: o acidente
misterioso, sim, mas também
o enigma do amor e do sexo,
os crimes políticos e a potência ardilosa do mito.
O acidente se revela como
simples pretexto para descrever uma relação amorosa
perpassada pela tragédia da
história -da Albânia, da ex-Iugoslávia e da Europa.
Mais do que isso, Bessfort
e Rovena, na visão de Kadaré-investigador, são como
que a atualização da confronto mítico dos sexos: homem e mulher como as duas
metades do Andrógino platônico (pág. 179), que tentam
purgar a sua incompletude
por meio do amor.
Na terceira parte, o livro retorna à investigação inicial,
mas o leitor já não está propriamente interessado na solução do enigma do acidente:
ele descobriu que há um mistério ainda maior que este -e
ainda mais insolúvel.
"ABRIL DESPEDAÇADO"
Kadaré, 74, vive desde
1990 na França. É autor de
mais de 40 obras, todas marcadas pela preocupação com
a história da Albânia.
Recebeu vários prêmios
relevantes, como o Príncipe
das Astúrias (2009), dado pelo governo espanhol.
Aliás, uma das melhores
passagens de "O Acidente" é
a releitura que Kadaré faz da
"Novela do Curioso Impertinente", que Cervantes incluiu em "Dom Quixote".
Entre os seus livros se destacam "Dossiê H" (1989) e
"Abril Despedaçado" (1980).
Este último foi adaptado
para o cinema em 2001 por
Walter Salles, que transportou a narrativa para os sertões do Nordeste brasileiro.
O ACIDENTE
AUTOR Ismail Kadaré
TRADUÇÃO Bernardo Joffily
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 47 (232 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo
JOSÉ SIMÃO
O colunista é publicado
no caderno Copa 2010
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