São Paulo, quinta-feira, 01 de julho de 2010

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CRÍTICA LITERATURA

Kadaré narra o mistério insolúvel do amor

Em "O Acidente", a magnífica narrativa do autor descreve relação entre casal marcada por conflitos políticos

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DA PUBLIFOLHA

"O Acidente", de Ismail Kadaré, é uma armadilha para o leitor. Uma extraordinária armadilha literária. O livro começa à maneira de uma novela policial. A morte misteriosa de um casal de amantes albaneses num acidente de estrada engendra uma investigação repleta de suspense.
Dura nove breves capítulos e ocupa a primeira parte da obra.
O suspense, então, "é suspenso", para dar início à segunda parte, uma espécie de narrativa dentro da narrativa, elaborada por um dos investigadores.
Em 13 capítulos, o investigador-autor reconstitui a vida do casal nas últimas 40 semanas antes das mortes, como se o motivo do intrigante acidente ultrapassasse a racionalidade da enquete policial e devesse ser descoberto por uma outra linguagem.
Agora, o que interessa não são exatamente os detalhes do acidente, mas, sim, a descrição do labirinto amoroso que envolve os dois amantes, Bessfort Y. e Rovena St.
O leitor, a princípio, se decepciona com a mudança. É como se ele saísse de uma pista de corrida e devesse caminhar num quarto escuro. O fascínio, entretanto, retorna, à medida que a segunda parte avança e atravessa a magnífica narrativa engendrada por Kadaré, na qual tudo vai se implicando de maneira espantosa: o acidente misterioso, sim, mas também o enigma do amor e do sexo, os crimes políticos e a potência ardilosa do mito.
O acidente se revela como simples pretexto para descrever uma relação amorosa perpassada pela tragédia da história -da Albânia, da ex-Iugoslávia e da Europa.
Mais do que isso, Bessfort e Rovena, na visão de Kadaré-investigador, são como que a atualização da confronto mítico dos sexos: homem e mulher como as duas metades do Andrógino platônico (pág. 179), que tentam purgar a sua incompletude por meio do amor.
Na terceira parte, o livro retorna à investigação inicial, mas o leitor já não está propriamente interessado na solução do enigma do acidente: ele descobriu que há um mistério ainda maior que este -e ainda mais insolúvel.

"ABRIL DESPEDAÇADO"
Kadaré, 74, vive desde 1990 na França. É autor de mais de 40 obras, todas marcadas pela preocupação com a história da Albânia.
Recebeu vários prêmios relevantes, como o Príncipe das Astúrias (2009), dado pelo governo espanhol.
Aliás, uma das melhores passagens de "O Acidente" é a releitura que Kadaré faz da "Novela do Curioso Impertinente", que Cervantes incluiu em "Dom Quixote".
Entre os seus livros se destacam "Dossiê H" (1989) e "Abril Despedaçado" (1980).
Este último foi adaptado para o cinema em 2001 por Walter Salles, que transportou a narrativa para os sertões do Nordeste brasileiro.


O ACIDENTE

AUTOR Ismail Kadaré
TRADUÇÃO Bernardo Joffily
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 47 (232 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


JOSÉ SIMÃO
O colunista é publicado no caderno Copa 2010


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