São Paulo, sábado, 01 de agosto de 2009

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LIVROS

Crítica/"Após o Anoitecer"

Autor supera colagem de referências

Romance retrata uma noite em Tóquio e é construído com cenas descritas de maneira fotográfica e diálogos naturalistas

SANTIAGO NAZARIAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma jovem japonesa dorme um sono profundo. Em frente à sua cama, uma televisão desligada da tomada pisca e se acende, apresentando um estranho ser sem rosto, que observa a menina. Enquanto isso, numa lanchonete no centro da cidade, sua irmã tenta ler um livro, mas é interrompida por um fluxo de personagens típicos da madrugada: um músico, uma prostituta, a gerente de um motel.
Sim, você já viu isso antes. São todas cenas e elementos familiares para quem acompanha a atual cultura pop japonesa -remetendo desde a filmes como "Ringu - O Chamado" (de Hideo Nakata, 1998, baseado no romance de Koji Suzuki), à literatura de Ryu Murakami e o filme "Encontros e Desencontros", de Sofia Copolla (2003).
À primeira vista, "Após o Anoitecer", romance de Haruki Murakami, é isso, uma colagem de referências. Mas é nas entrelinhas que se vai muito mais longe.
O romance conta a história dessas duas irmãs, Eri e Mari. Enquanto a primeira está num sono perpétuo em casa, a outra tenta passar a madrugada lendo numa lanchonete. Não sabemos sobre o que é seu livro, mas é pela privação de sua leitura que temos a nossa. Os personagens que impedem Mari de ler é que trazem a nós a narrativa.

Lacunas
Há os mafiosos chineses que protegem e exploram suas prostitutas; o trombonista que aproveita um de seus últimos ensaios, planejando largar a música pelo estudo de Direito; o pai de família que vira as madrugadas trabalhando com softwares -e dando escapadas ocasionais. São quase sequências de contos com uma moldura comum. As histórias se cruzam, mas não se costuram totalmente, dando ao leitor a função de preencher as lacunas.
Cada capítulo é aberto com a ilustração de um relógio mostrando o avanço da madrugada. Intercalam-se as ações de Mari pela cidade com a suspensão onírica de Eri em sua cama. As cenas são descritas de maneira fotográfica, quase cinematográfica. Os diálogos naturalistas -numa fluente tradução direto do japonês de Lica Hashimoto- aproximam ainda mais o livro do melhor que a literatura pop pode oferecer: uma identificação moderna e imediata.
Há também o tom doce das comédias românticas, no flerte comedido dos jovens orientais. No final, temos um retrato parcial de uma noite em Tóquio, como se tivéssemos de esperar pela próxima para a história continuar.
Haruki Murakami é hoje um dos autores mais importantes do Japão, autor de obras como "Norwegian Wood", "Dance, Dance, Dance" e "Kafka à Beira Mar" e vencedor de prêmios como o Franz Kafka Prize e o Yomiuri (um dos mais importantes do Japão). "Após o Anoitecer" é daqueles livros para ser lido atravessando a madrugada, aproveitando o conforto e a satisfação de perceber que, com uma obra dessas em mãos, não estamos perdendo nada do que acontece por aí afora.

SANTIAGO NAZARIAN é escritor, autor de "Mastigando Humanos" (Nova Fronteira). Seu mais recente romance, "O Prédio, o Tédio e o Menino Cego", sai agora pela Record.


APÓS O ANOITECER

Autor: Haruki Murakami
Tradução: Lica Hashimoto
Editora: Alfaguara
Quanto: R$ 39,90 (208 págs.)
Avaliação: ótimo




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