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LIVROS
Crítica/"A Morte do Gourmet"
Romance de Muriel Barbery tem ecos de "Cidadão Kane"
Francesa trata de gourmet que tenta desvendar segredo em seus últimos momentos
MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Muriel Barbery é uma
escritora relativamente jovem, nascida em 1969, cujo segundo romance, "A Elegância do Ouriço", vendeu mais de um milhão
de exemplares.
Trata-se de um feito surpreendente se pensarmos que a
obra fala, sobretudo, do cotidiano besta de uma zeladora de
maus bofes e uma garota superdotada, e traz considerações
doutas sobre Husserl, Tolstói e
o cineasta japonês Yasujiro
Ozu. Definitivamente não é um
material de best-seller.
E Barbery escreve muitíssimo bem. O modo como descreve as cenas, como destrinça um
pensamento difícil por meio de
imagens que causam forte impressão, a maneira como foca
no miúdo para ressaltar o grande, isso tudo, sem dúvida, responde pelo encanto daquele livro -e deste também, a sua estreia na ficção.
A trama aqui se centra em
um único personagem, e ele está morrendo. Tem dois dias de
vida. Os outros personagens (os
filhos, a mulher, a amante, o sobrinho, a zeladora -a mesma
que depois seria a protagonista
de "A Elegância...") servem tão-somente a iluminar outras facetas de sua personalidade
mais ou menos complexa.
Reconhecemos ecos de "Cidadão Kane", o filme de Orson
Welles no qual a ascensão e a
queda de um magnata das comunicações se narram por
meio de diferentes pontos de
vista. Como Kane, Pierre Arthens, o gourmet, o festejado e
temido crítico gastronômico,
também tem o seu "rosebud",
aquele segredo que dá sentido à
sua vida e só lhe é revelado no
leito de morte.
"Única verdade"
Mas o segredo de Pierre é
bem menos palpável que o de
Kane. Seria, como ele explica,
um prato, um acepipe, um "sabor esquecido que se revelaria
no crepúsculo da vida como a
única verdade". Pierre passa
suas últimas horas vasculhando a mente em busca desse sabor inefável.
É o oposto de Proust. Se no
clássico a delicada madeleine
desperta toda uma gama de
evocações, aqui o passado é cavoucado para que venha à tona,
como se fosse, a própria madeleine: "O prato medíocre do
qual apenas a emoção a ele ligada seria preciosa e me revelaria
um dom de viver até então incompreendido". Ecos de autoajuda, também, portanto.
Em sua exploração mental,
ele procura recuperar a emoção
de pitéus marroquinos, de sardinhas grelhadas em sua infância na Bretanha, de sashimis
preparados por um elusivo
mestre japonês. E o que vai sendo revelado, ao mesmo tempo,
ao lado das evocações belamente embaladas em perfumes,
imagens e sinestesias, é o caráter autoritário e despótico do
personagem.
Ele nunca amou os filhos.
Tratou a mulher com frieza, e a
traiu inúmeras vezes. Como em
"A Elegância...", temos um personagem encerrado em si mesmo, prisioneiro de um autismo
existencial que o impede de
aceitar o outro, ou o mundo.
Refugia-se em sua arte. Chamemo-la aqui de gastronomia.
Nos pequenos relatos de
Pierre, muitas vezes excessivamente preciosos, vemos fantasmas de outras pessoas. Agora,
porém, é tarde demais, e a descoberta da guloseima enfim
reencontrada só confirma a
tragédia de sua alienação, a
triste sina dos que não compreendem que a grande arte só
se faz ao sabor da vida pequena,
áspera e obscura.
MARCELO PEN é professor de teoria literária na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
A MORTE DO GOURMET
Autor: Muriel Barbery
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 32 (126 págs.)
Avaliação: bom
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