São Paulo, sábado, 01 de agosto de 2009

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LIVROS

Crítica/"A Morte do Gourmet"

Romance de Muriel Barbery tem ecos de "Cidadão Kane"

Francesa trata de gourmet que tenta desvendar segredo em seus últimos momentos

MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Muriel Barbery é uma escritora relativamente jovem, nascida em 1969, cujo segundo romance, "A Elegância do Ouriço", vendeu mais de um milhão de exemplares. Trata-se de um feito surpreendente se pensarmos que a obra fala, sobretudo, do cotidiano besta de uma zeladora de maus bofes e uma garota superdotada, e traz considerações doutas sobre Husserl, Tolstói e o cineasta japonês Yasujiro Ozu. Definitivamente não é um material de best-seller.
E Barbery escreve muitíssimo bem. O modo como descreve as cenas, como destrinça um pensamento difícil por meio de imagens que causam forte impressão, a maneira como foca no miúdo para ressaltar o grande, isso tudo, sem dúvida, responde pelo encanto daquele livro -e deste também, a sua estreia na ficção.
A trama aqui se centra em um único personagem, e ele está morrendo. Tem dois dias de vida. Os outros personagens (os filhos, a mulher, a amante, o sobrinho, a zeladora -a mesma que depois seria a protagonista de "A Elegância...") servem tão-somente a iluminar outras facetas de sua personalidade mais ou menos complexa.
Reconhecemos ecos de "Cidadão Kane", o filme de Orson Welles no qual a ascensão e a queda de um magnata das comunicações se narram por meio de diferentes pontos de vista. Como Kane, Pierre Arthens, o gourmet, o festejado e temido crítico gastronômico, também tem o seu "rosebud", aquele segredo que dá sentido à sua vida e só lhe é revelado no leito de morte.

"Única verdade"
Mas o segredo de Pierre é bem menos palpável que o de Kane. Seria, como ele explica, um prato, um acepipe, um "sabor esquecido que se revelaria no crepúsculo da vida como a única verdade". Pierre passa suas últimas horas vasculhando a mente em busca desse sabor inefável.
É o oposto de Proust. Se no clássico a delicada madeleine desperta toda uma gama de evocações, aqui o passado é cavoucado para que venha à tona, como se fosse, a própria madeleine: "O prato medíocre do qual apenas a emoção a ele ligada seria preciosa e me revelaria um dom de viver até então incompreendido". Ecos de autoajuda, também, portanto.
Em sua exploração mental, ele procura recuperar a emoção de pitéus marroquinos, de sardinhas grelhadas em sua infância na Bretanha, de sashimis preparados por um elusivo mestre japonês. E o que vai sendo revelado, ao mesmo tempo, ao lado das evocações belamente embaladas em perfumes, imagens e sinestesias, é o caráter autoritário e despótico do personagem. Ele nunca amou os filhos.
Tratou a mulher com frieza, e a traiu inúmeras vezes. Como em "A Elegância...", temos um personagem encerrado em si mesmo, prisioneiro de um autismo existencial que o impede de aceitar o outro, ou o mundo. Refugia-se em sua arte. Chamemo-la aqui de gastronomia.
Nos pequenos relatos de Pierre, muitas vezes excessivamente preciosos, vemos fantasmas de outras pessoas. Agora, porém, é tarde demais, e a descoberta da guloseima enfim reencontrada só confirma a tragédia de sua alienação, a triste sina dos que não compreendem que a grande arte só se faz ao sabor da vida pequena, áspera e obscura.

MARCELO PEN é professor de teoria literária na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.


A MORTE DO GOURMET

Autor: Muriel Barbery
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 32 (126 págs.)
Avaliação: bom




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