São Paulo, sábado, 01 de setembro de 2001

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WALTER SALLES

O fabuloso Zofir

Rio de Contas, Bahia. A cidade fica na chapada Diamantina, aninhada a mil metros de altitude. O casario colonial, herança do ciclo do ouro, é bem conservado. Não há cartões-postais nem bibelôs à venda em cada esquina. Ao contrário de outras cidades históricas brasileiras, Rio de Contas não se descaracterizou para agradar aos turistas. E a questão ecológica, ali, não é um mero instrumento de marketing. Faz parte de uma compreensão coletiva, própria à cidade.
Rio de Contas foi a última das quatro cidades em que rodamos um filme no final do ano passado. As equipes de produção que estavam preparando o terreno, indo e voltando para lá, chegavam sempre com a mesma história. "Você precisa ver, há um cara fabuloso em Rio de Contas, um tal de Zofir, um artista plástico que já fazia umas instalações inacreditáveis no início dos anos 60." A cada grupo que voltava, a mesma referência. O fabuloso Zofir. Até que uma menina do departamento de arte, de origem européia, vaticinou: "Esse Zôfir é a misturra de Duchamp com o Bispô do Rosariô. É fabulosô mesmô".
Inútil dizer que, depois dessa sentença, fizemos fila para conhecer o interessantíssimo museu de Zofir, tão logo chegamos a Rio de Contas. Instalado na casa onde ele morou, numa das praças da cidade e ao lado de um pequeno teatro do século 18, o museu reúne um acervo de peças realmente surpreendentes. São quase sempre grandes instalações, objetos feitos de dezenas de outros objetos descartáveis. As peças, lúdicas e interativas, são feitas para dialogar com o espectador. Feitas, também, para diverti-lo.
A "Mula-sem-Cabeça"... tem rosto, sim, mas corpo e pescoço são uma coisa só. "Frutos que Pecaram" reúne notas bancárias de diversos governos brasileiros, de J.K. ao final do ciclo militar. Não há dúvida. Pecaram mesmo. "Quadro das Chaves" é uma colagem com chaves envelhecidas que não abrem mais porta alguma; são dezenas e dezenas delas, verdadeiro labirinto borgiano. "Cuidado com sua Língua" é uma língua enorme que adverte: se não tomar cuidado, fica desse tamanho.
Outros achados do fabuloso Zofir: o "Telecego", televisão que só passa o nada, como a televisão comercial. "Primeiro de Janeiro", instalação com velas e faróis de caminhão que piscam para o visitante. E a "Legítima Cara-de-Pau": um rosto feito, é claro, de madeira.
Negro, nascido em uma família carente de Ituaçu, Bahia, em 1926, Zofir Oliveira criou uma obra de um humor cáustico com as sobras dos objetos que encontrava. "Cabeça de Analfabeto" talvez seja a peça mais afirmativa de seu olhar crítico e agudo. Acima de uma mesa de madeira, um corpo se articula por meio de peças móveis, feitas de molas e metal. Sobre a cabeça está fixada uma bandeja retangular, contendo dezenas de objetos fixados de forma aleatória, partes móveis de um cérebro desconexo. É uma mistura de parafusos, santos, carimbos e botões que anuncia uma confusão mental sem igual.
Suas filhas, Is e Zonita, explicam-me que o pai era autodidata. Publicou seu primeiro livro de poemas, "Cartas de um Matuto ao Outro", em 1960, quando trabalhava no IBGE. Rebatizou-se Zofir Brasil. E passou a vida prolongando a vida dos objetos que outras pessoas jogavam fora. "Com Zofir, a sentença de morte dirigida a esses objetos por seus antigos usuários ficava suspensa por mais algum tempo", afirmou Is.
Tinha medo da morte. Morreu dormindo, em 1990. "Zofir sempre chamava a atenção para a semelhança dos destinos dos objetos usados em seus trabalhos e a nossa própria condição humana", revela sua filha.
Não sei se Zofir sabia quem foram Duchamp ou Bispo do Rosário. Talvez nem importe saber. O que mais nos surpreendeu foi o fato de que, em um cantinho do Brasil, alguém recriava o todo a partir do nada. Silenciosamente. E não conseguíamos parar de pensar nos outros Zofir que, através do país, talvez estivessem fazendo a mesma coisa.
Na mesma cidade em que Zofir viveu durante 30 anos, uma equipe de cinema penou para realizar algumas cenas de um filme. Trouxe câmeras, lentes, roupas e adereços. Tanto para tão pouco. A alguns passos de onde estávamos, Zofir, brasileiro e autodidata, reinventou o mundo munido apenas da sua imaginação.
PS1 - Uma boa notícia: a volta do cinema militante. Vinte e cinco diretores de diversas gerações do cinema italiano, entre eles Ettore Scola e Monicelli, filmaram o caos ocorrido em Gênova durante a reunião do G-8. O documentário de longa-metragem será lançado em outubro nos cinemas italianos. Quem já viu garante que as cenas são impressionantes.
PS2 - Férias. Agradeço aos que tiveram a paciência de acompanhar a coluna. Até outubro.


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