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WALTER SALLES
O fabuloso Zofir
Rio de Contas, Bahia. A cidade fica na chapada Diamantina, aninhada a mil metros
de altitude. O casario colonial,
herança do ciclo do ouro, é bem
conservado. Não há cartões-postais nem bibelôs à venda em cada
esquina. Ao contrário de outras
cidades históricas brasileiras, Rio
de Contas não se descaracterizou
para agradar aos turistas. E a
questão ecológica, ali, não é um
mero instrumento de marketing.
Faz parte de uma compreensão
coletiva, própria à cidade.
Rio de Contas foi a última das
quatro cidades em que rodamos
um filme no final do ano passado.
As equipes de produção que estavam preparando o terreno, indo e
voltando para lá, chegavam sempre com a mesma história. "Você
precisa ver, há um cara fabuloso
em Rio de Contas, um tal de Zofir,
um artista plástico que já fazia
umas instalações inacreditáveis
no início dos anos 60." A cada
grupo que voltava, a mesma referência. O fabuloso Zofir. Até que
uma menina do departamento de
arte, de origem européia, vaticinou: "Esse Zôfir é a misturra de
Duchamp com o Bispô do Rosariô. É fabulosô mesmô".
Inútil dizer que, depois dessa
sentença, fizemos fila para conhecer o interessantíssimo museu de
Zofir, tão logo chegamos a Rio de
Contas. Instalado na casa onde
ele morou, numa das praças da
cidade e ao lado de um pequeno
teatro do século 18, o museu reúne
um acervo de peças realmente
surpreendentes. São quase sempre grandes instalações, objetos
feitos de dezenas de outros objetos
descartáveis. As peças, lúdicas e
interativas, são feitas para dialogar com o espectador. Feitas, também, para diverti-lo.
A "Mula-sem-Cabeça"... tem
rosto, sim, mas corpo e pescoço
são uma coisa só. "Frutos que Pecaram" reúne notas bancárias de
diversos governos brasileiros, de
J.K. ao final do ciclo militar. Não
há dúvida. Pecaram mesmo.
"Quadro das Chaves" é uma colagem com chaves envelhecidas que
não abrem mais porta alguma;
são dezenas e dezenas delas, verdadeiro labirinto borgiano. "Cuidado com sua Língua" é uma língua enorme que adverte: se não
tomar cuidado, fica desse tamanho.
Outros achados do fabuloso Zofir: o "Telecego", televisão que só
passa o nada, como a televisão comercial. "Primeiro de Janeiro",
instalação com velas e faróis de
caminhão que piscam para o visitante. E a "Legítima Cara-de-Pau": um rosto feito, é claro, de
madeira.
Negro, nascido em uma família
carente de Ituaçu, Bahia, em
1926, Zofir Oliveira criou uma
obra de um humor cáustico com
as sobras dos objetos que encontrava. "Cabeça de Analfabeto"
talvez seja a peça mais afirmativa
de seu olhar crítico e agudo. Acima de uma mesa de madeira, um
corpo se articula por meio de peças móveis, feitas de molas e metal. Sobre a cabeça está fixada
uma bandeja retangular, contendo dezenas de objetos fixados de
forma aleatória, partes móveis de
um cérebro desconexo. É uma
mistura de parafusos, santos, carimbos e botões que anuncia uma
confusão mental sem igual.
Suas filhas, Is e Zonita, explicam-me que o pai era autodidata.
Publicou seu primeiro livro de
poemas, "Cartas de um Matuto
ao Outro", em 1960, quando trabalhava no IBGE. Rebatizou-se
Zofir Brasil. E passou a vida prolongando a vida dos objetos que
outras pessoas jogavam fora.
"Com Zofir, a sentença de morte
dirigida a esses objetos por seus
antigos usuários ficava suspensa
por mais algum tempo", afirmou
Is.
Tinha medo da morte. Morreu
dormindo, em 1990. "Zofir sempre chamava a atenção para a semelhança dos destinos dos objetos usados em seus trabalhos e a
nossa própria condição humana", revela sua filha.
Não sei se Zofir sabia quem foram Duchamp ou Bispo do Rosário. Talvez nem importe saber. O
que mais nos surpreendeu foi o
fato de que, em um cantinho do
Brasil, alguém recriava o todo a
partir do nada. Silenciosamente.
E não conseguíamos parar de
pensar nos outros Zofir que, através do país, talvez estivessem fazendo a mesma coisa.
Na mesma cidade em que Zofir
viveu durante 30 anos, uma equipe de cinema penou para realizar
algumas cenas de um filme. Trouxe câmeras, lentes, roupas e adereços. Tanto para tão pouco. A alguns passos de onde estávamos,
Zofir, brasileiro e autodidata,
reinventou o mundo munido
apenas da sua imaginação.
PS1 - Uma boa notícia: a volta
do cinema militante. Vinte e cinco diretores de diversas gerações
do cinema italiano, entre eles Ettore Scola e Monicelli, filmaram o
caos ocorrido em Gênova durante
a reunião do G-8. O documentário de longa-metragem será lançado em outubro nos cinemas italianos. Quem já viu garante que
as cenas são impressionantes.
PS2 - Férias. Agradeço aos que
tiveram a paciência de acompanhar a coluna. Até outubro.
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