|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
COMIDA
Evento no Rio de Janeiro oferece uma experiência onde o cliente tem de comer no escuro e é servido por garçons cegos
Encontros às escuras
CRISTIANE LEONEL
ENVIADA ESPECIAL AO RIO
Duas amigas, bem-vestidas,
sentam-se à mesa do restaurante.
Enquanto o maître serve o vinho,
as duas tateiam os guardanapos e
os apóiam sobre as pernas. Conversam um pouco, para quebrar o
silêncio, enquanto aguardam o
primeiro prato. As entradas chegam à mesa. Ainda tateando, uma
das mulheres agarra os talheres,
corta um pedaço da entrada e o
leva à boca. Quase engasga. Na
segunda garfada, outro pedaço é preso ao garfo, mas, a
poucos centímetros dos lábios, escorrega e cai sobre a
toalha. O talher chega vazio à boca. Impaciente, a
mulher troca o talher pelas mãos, coloca os dedos no prato, agarra um
punhado de comida e
finalmente se alimenta.
A quebra da etiqueta
é compreensível: nem
ela nem amiga sabiam
o que estavam comendo. Na verdade, não
enxergavam nada e tiveram de engordurar
os dedos para participar de uma experiência gastronômica excêntrica: um jantar às
escuras.
O "dinner in the
dark" já é prática conhecida em algumas cidades do mundo, como
Nova York, Paris e Berlim,
mas é inédita no Brasil.
Entre os dias 7 e 11 de setembro, durante o Degusta
Rio, evento que acontece no
Rio de Janeiro, jantares às escuras serão realizados no salão do
Jockey Club Brasileiro, só que em
caráter experimental. Na Europa
e nos EUA, há restaurantes que
oferecem a experiência permanentemente.
A inspiração dos organizadores
do evento carioca veio do restaurante Dans Le Noir? (com ponto
de interrogação mesmo), em Paris, um dos primeiros que apagaram a luz do salão para que os
clientes pudessem aguçar os outros sentidos e experimentassem,
por cerca de uma hora, as dificuldades de um deficiente visual. O
"dinner in the dark", no entanto,
foi criado por um restaurante em
Zurique, o Blindekuh (o nome
significa "vaca cega"), que começou a organizar jantares esporádicos em uma antiga capela em setembro de 1999. O conceito foi
criado pela fundação Blind-Liecht, que promove projetos para trazer ao conhecimento do público as limitações que a falta da
visão traz. A experiência se revelou não só um ato de conscientização social como também um
evento gastronômico inusitado.
Para que a experiência seja realmente impactante para os clientes, todos os garçons do Dans Le
Noir? são cegos, o que causa uma
inversão de papéis -na escuridão, os cegos tornam-se os guias.
Para o Degusta Rio, três deficientes visuais do Centro de Educação
para o Trabalho e a Cidadania do
Senac de Irajá, que integram o
projeto Sem Limites, estão sendo
treinados para o serviço (veja
mais no texto à direita).
Em outros restaurantes do
mundo, como o Suba, em Nova
York, a proposta é um pouco menos "nobre". Lá, a intenção é promover um encontro entre solteiros, e a escuridão estimula o princípio "leva a melhor quem for
bom de papo". Na hora da sobremesa, os garçons (que não são cegos, mas usam óculos de visão noturna) acendem velas para que os
clientes finalmente vejam se a
aparência condiz com o papo.
Surpresa na escuridão
Um pouco diferente do que
acontece no Dans Le Noir?, onde
há opção de escolher os pratos antes do jantar ou comer um menu
surpresa, no Degusta Rio o cliente
não terá o direito de escolher o
que vai provar, poderá apenas dizer se tem alguma restrição alimentar antes da refeição. Samantha Aquim, proprietária do bufê
Aquim, no Rio, é quem assina o
cardápio. "É um desafio fazer o
menu desse tipo, já que hoje em
dia quanto mais pirotécnica for a
decoração do prato, melhor a comida." Aquim propõe um casamento entre o conceito da escuridão e o cardápio. "O primeiro
prato é muito importante para o
cliente, porque ele acabou de entrar numa sala escura, um ambiente estranho. Nesse momento,
a comida tem que ser um conforto, não um desafio. O segundo
prato terá elementos que o cliente
terá dificuldade de reconhecer. O
prato principal, então, é um desafio mesmo, porque ele obrigatoriamente vai precisar usar os talheres. E a sobremesa será um ultimato, a pessoa precisará de muita coordenação."
Como no Dans Le Noir?, as mesas são coletivas, para até 12 pessoas, uma vez que o ato de comer
no escuro pode ser uma experiência um tanto aflitiva. André Morin, gerente do Senac Bistrô e um
dos realizadores do evento, fala
sobre a importância do serviço
nesse instante: "Uma preocupação da equipe é servir os pratos
rapidamente. No escuro, o tempo
ganha outro valor -tudo parece
mais demorado".
Morin, que já participou do
"dinner in the dark" no Dans Le
Noir?, propôs algumas adaptações para a versão brasileira. Durante o café, por exemplo, o ambiente será penumbroso para que
comensais e garçons tenham
chance de comentar a experiência. Outra inovação é a possibilidade de o cliente vestir um avental
antes da refeição, o que é um bom
"escudo" diante da inevitável
lambança provocada pela escuridão. Utilidade esta confirmada
por Morin: "Imagina aquelas mulheres de vestido Channel saindo
todas imundas?! Não dá".
Texto Anterior: Livros: Pamuk pode ser preso por até três anos Próximo Texto: Deficiente tem treino-relâmpago Índice
|