São Paulo, quinta-feira, 01 de setembro de 2005

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COMIDA

Evento no Rio de Janeiro oferece uma experiência onde o cliente tem de comer no escuro e é servido por garçons cegos

Encontros às escuras

CRISTIANE LEONEL
ENVIADA ESPECIAL AO RIO

Duas amigas, bem-vestidas, sentam-se à mesa do restaurante. Enquanto o maître serve o vinho, as duas tateiam os guardanapos e os apóiam sobre as pernas. Conversam um pouco, para quebrar o silêncio, enquanto aguardam o primeiro prato. As entradas chegam à mesa. Ainda tateando, uma das mulheres agarra os talheres, corta um pedaço da entrada e o leva à boca. Quase engasga. Na segunda garfada, outro pedaço é preso ao garfo, mas, a poucos centímetros dos lábios, escorrega e cai sobre a toalha. O talher chega vazio à boca. Impaciente, a mulher troca o talher pelas mãos, coloca os dedos no prato, agarra um punhado de comida e finalmente se alimenta.
A quebra da etiqueta é compreensível: nem ela nem amiga sabiam o que estavam comendo. Na verdade, não enxergavam nada e tiveram de engordurar os dedos para participar de uma experiência gastronômica excêntrica: um jantar às escuras.
O "dinner in the dark" já é prática conhecida em algumas cidades do mundo, como Nova York, Paris e Berlim, mas é inédita no Brasil. Entre os dias 7 e 11 de setembro, durante o Degusta Rio, evento que acontece no Rio de Janeiro, jantares às escuras serão realizados no salão do Jockey Club Brasileiro, só que em caráter experimental. Na Europa e nos EUA, há restaurantes que oferecem a experiência permanentemente.
A inspiração dos organizadores do evento carioca veio do restaurante Dans Le Noir? (com ponto de interrogação mesmo), em Paris, um dos primeiros que apagaram a luz do salão para que os clientes pudessem aguçar os outros sentidos e experimentassem, por cerca de uma hora, as dificuldades de um deficiente visual. O "dinner in the dark", no entanto, foi criado por um restaurante em Zurique, o Blindekuh (o nome significa "vaca cega"), que começou a organizar jantares esporádicos em uma antiga capela em setembro de 1999. O conceito foi criado pela fundação Blind-Liecht, que promove projetos para trazer ao conhecimento do público as limitações que a falta da visão traz. A experiência se revelou não só um ato de conscientização social como também um evento gastronômico inusitado.
Para que a experiência seja realmente impactante para os clientes, todos os garçons do Dans Le Noir? são cegos, o que causa uma inversão de papéis -na escuridão, os cegos tornam-se os guias. Para o Degusta Rio, três deficientes visuais do Centro de Educação para o Trabalho e a Cidadania do Senac de Irajá, que integram o projeto Sem Limites, estão sendo treinados para o serviço (veja mais no texto à direita).
Em outros restaurantes do mundo, como o Suba, em Nova York, a proposta é um pouco menos "nobre". Lá, a intenção é promover um encontro entre solteiros, e a escuridão estimula o princípio "leva a melhor quem for bom de papo". Na hora da sobremesa, os garçons (que não são cegos, mas usam óculos de visão noturna) acendem velas para que os clientes finalmente vejam se a aparência condiz com o papo.

Surpresa na escuridão
Um pouco diferente do que acontece no Dans Le Noir?, onde há opção de escolher os pratos antes do jantar ou comer um menu surpresa, no Degusta Rio o cliente não terá o direito de escolher o que vai provar, poderá apenas dizer se tem alguma restrição alimentar antes da refeição. Samantha Aquim, proprietária do bufê Aquim, no Rio, é quem assina o cardápio. "É um desafio fazer o menu desse tipo, já que hoje em dia quanto mais pirotécnica for a decoração do prato, melhor a comida." Aquim propõe um casamento entre o conceito da escuridão e o cardápio. "O primeiro prato é muito importante para o cliente, porque ele acabou de entrar numa sala escura, um ambiente estranho. Nesse momento, a comida tem que ser um conforto, não um desafio. O segundo prato terá elementos que o cliente terá dificuldade de reconhecer. O prato principal, então, é um desafio mesmo, porque ele obrigatoriamente vai precisar usar os talheres. E a sobremesa será um ultimato, a pessoa precisará de muita coordenação."
Como no Dans Le Noir?, as mesas são coletivas, para até 12 pessoas, uma vez que o ato de comer no escuro pode ser uma experiência um tanto aflitiva. André Morin, gerente do Senac Bistrô e um dos realizadores do evento, fala sobre a importância do serviço nesse instante: "Uma preocupação da equipe é servir os pratos rapidamente. No escuro, o tempo ganha outro valor -tudo parece mais demorado".
Morin, que já participou do "dinner in the dark" no Dans Le Noir?, propôs algumas adaptações para a versão brasileira. Durante o café, por exemplo, o ambiente será penumbroso para que comensais e garçons tenham chance de comentar a experiência. Outra inovação é a possibilidade de o cliente vestir um avental antes da refeição, o que é um bom "escudo" diante da inevitável lambança provocada pela escuridão. Utilidade esta confirmada por Morin: "Imagina aquelas mulheres de vestido Channel saindo todas imundas?! Não dá".


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