São Paulo, sábado, 01 de setembro de 2007

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Crítica/"O Diário de Jonathas Abbott"

Ótimo relato de inglês lança olhar tropical sobre a Europa

Abbott viveu no Brasil por 56 anos; diário trata da época que ele estudou fora

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1812, um rapaz inglês de 16 anos chamado Jonathas Abbott viajou para a Bahia, onde viveria por 56 anos. Veio como espécie de pajem de um médico português (depois lente do Colégio Médico-Cirúrgico da Bahia) e se tornou um dos personagens mais importantes da medicina, ciência e cultura do século 19 naquela parte do país.
Aos 34 anos, em 1830, Jonathas Abbott cruzou de volta o Atlântico para uma temporada de estudos de pós-graduação em medicina na Europa. No período que passou lá, manteve um diário, que agora vem à luz para o grande público pela primeira vez.
Trata-se de um dos mais interessantes lançamentos do ano da indústria editorial brasileira. Enriquecido por prefácio erudito e instigante do embaixador Rubens Ricupero e por notas de rodapé e anexos detalhistas e esclarecedores -fruto de trabalho minucioso e demorado de pesquisa histórica e documental- do embaixador Fernando Abbott Galvão (descendente do autor), "O Diário de Jonathas Abbott" é um documento curiosíssimo.
Como nota Ricupero em seu texto, é dos poucos exemplares contrários de um gênero literário que floresceu no Brasil após a vinda para o Rio da família real, o dos viajantes europeus que vinham conhecer este país tropical.
Abbott, embora cidadão inglês, era muito mais brasileiro quando foi para a Europa aperfeiçoar-se como médico e seu relato nos oferece a rara perspectiva de um conterrâneo que observa a Europa com olhar tropical. Ele se incomoda com o frio do Velho Mundo, tem saudades da sua "cara Bahia", odeia Paris: "Eu te esconjuro, coisa ruim!". Só deseja voltar depressa: "Quero asas, quem mas empresta? ... Ninguém."
As descrições de Abbott são muito realistas e oferecem ao leitor do século 21 uma imagem certamente muito mais fiel às condições de vida da Europa do século 19 do que as dos romances da época.
Não havia glamour nenhum nas viagens interoceânicas de então, nem nas carruagens que trafegavam por estradas empoeiradas e esburacadas da França ou da Itália de então, e Abbott no seu diário, escrito provavelmente apenas para si próprio e talvez alguns poucos íntimos, não tinha motivo nenhum para dourar pílulas.
A medicina já havia obtido avanços significativos, mas as práticas, especialmente as cirúrgicas, eram muito brutais para os hábitos de hoje em dia e a descrição crua é outro atrativo desse livro.
Abbott descreve confrontos políticos que ocorriam e se impressiona com a violência de manifestantes: "Esta gente não me agrada. No Brasil, temos rusgas, mas não são bárbaras e ferozes como as dos franceses. Passa fora!"
O viajante recebe notícias da política brasileira com atraso, preocupa-se e anseia por detalhes para entender suas conseqüências: "O imperador do Brasil abdicou a favor do filho...
Que diabo de história é essa?
Que motivos houve? ... Mas qual será o intento do ex-imperador na Europa? Eu o antevejo com a coroa de Portugal na cabeça". Como ressalta Ricupero, não se vê no diário "nem sopro longínquo do embasbacamento dos brasileiros posteriores pela Europa, França e Paris.
Nem traço também do sentimento de inferioridade e desapreço pela terra natal". O inglês Abbott foi um brasileiro orgulhoso de sua nacionalidade.


O DIÁRIO DE JONATHAS ABBOTT
Autor:
Fernando Abbott Galvão
Editora: Francisco Alves
Quanto: R$ 44 (528 págs.)
Avaliação: ótimo


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