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Crítica/"O Diário de Jonathas Abbott"
Ótimo relato de inglês lança olhar tropical sobre a Europa
Abbott viveu no Brasil por 56 anos; diário trata da época que ele estudou fora
CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em 1812, um rapaz inglês
de 16 anos chamado Jonathas Abbott viajou
para a Bahia, onde viveria por
56 anos. Veio como espécie de
pajem de um médico português
(depois lente do Colégio Médico-Cirúrgico da Bahia) e se tornou um dos personagens mais
importantes da medicina, ciência e cultura do século 19 naquela parte do país.
Aos 34 anos, em 1830, Jonathas Abbott cruzou de volta o
Atlântico para uma temporada
de estudos de pós-graduação
em medicina na Europa. No período que passou lá, manteve
um diário, que agora vem à luz
para o grande público pela primeira vez.
Trata-se de um dos mais interessantes lançamentos do
ano da indústria editorial brasileira. Enriquecido por prefácio
erudito e instigante do embaixador Rubens Ricupero e por
notas de rodapé e anexos detalhistas e esclarecedores -fruto
de trabalho minucioso e demorado de pesquisa histórica e documental- do embaixador
Fernando Abbott Galvão (descendente do autor), "O Diário
de Jonathas Abbott" é um documento curiosíssimo.
Como nota Ricupero em seu
texto, é dos poucos exemplares
contrários de um gênero literário que floresceu no Brasil após
a vinda para o Rio da família
real, o dos viajantes europeus
que vinham conhecer este país
tropical.
Abbott, embora cidadão inglês, era muito mais brasileiro
quando foi para a Europa aperfeiçoar-se como médico e seu
relato nos oferece a rara perspectiva de um conterrâneo que
observa a Europa com olhar
tropical. Ele se incomoda com o
frio do Velho Mundo, tem saudades da sua "cara Bahia",
odeia Paris: "Eu te esconjuro,
coisa ruim!". Só deseja voltar
depressa: "Quero asas, quem
mas empresta? ... Ninguém."
As descrições de Abbott são
muito realistas e oferecem ao
leitor do século 21 uma imagem
certamente muito mais fiel às
condições de vida da Europa do
século 19 do que as dos romances da época.
Não havia glamour nenhum
nas viagens interoceânicas de
então, nem nas carruagens que
trafegavam por estradas empoeiradas e esburacadas da
França ou da Itália de então, e
Abbott no seu diário, escrito
provavelmente apenas para si
próprio e talvez alguns poucos
íntimos, não tinha motivo nenhum para dourar pílulas.
A medicina já havia obtido
avanços significativos, mas as
práticas, especialmente as cirúrgicas, eram muito brutais
para os hábitos de hoje em dia e
a descrição crua é outro atrativo desse livro.
Abbott descreve confrontos
políticos que ocorriam e se impressiona com a violência de
manifestantes: "Esta gente não
me agrada. No Brasil, temos
rusgas, mas não são bárbaras e
ferozes como as dos franceses.
Passa fora!"
O viajante recebe notícias da
política brasileira com atraso,
preocupa-se e anseia por detalhes para entender suas conseqüências: "O imperador do Brasil abdicou a favor do filho...
Que diabo de história é essa?
Que motivos houve? ... Mas
qual será o intento do ex-imperador na Europa? Eu o antevejo
com a coroa de Portugal na cabeça". Como ressalta Ricupero,
não se vê no diário "nem sopro
longínquo do embasbacamento dos brasileiros posteriores
pela Europa, França e Paris.
Nem traço também do sentimento de inferioridade e desapreço pela terra natal". O inglês
Abbott foi um brasileiro orgulhoso de sua nacionalidade.
O DIÁRIO DE JONATHAS ABBOTT
Autor: Fernando Abbott Galvão
Editora: Francisco Alves
Quanto: R$ 44 (528 págs.)
Avaliação: ótimo
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