São Paulo, quarta-feira, 01 de novembro de 2000

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MARCELO COELHO

Sobre mudanças, Lênin e o PT

Mudei de casa na semana passada; não sou dos que reclamam muito desse tipo de experiência. Os prazeres de situar-se num novo lugar -a luz diferente, o bairro a ser explorado, uma outra vista da janela- superam o desconforto da situação.
Tenho dedicado boa parte do tempo a desencaixotar livros e organizá-los na estante. No meio desse processo, fui tomado de uma espécie de fúria inquisitorial. Comecei a me desfazer de coleções inteiras. Para o lixo! Para o sebo! Para o fogo! Coisas que nunca li nem vou ler.
Trata-se de uma alegre capitulação. Novos tempos: eu, que nunca me desfiz dos discos de vinil, encaminhei a bom destino volumes e mais volumes de sociologia e de marxismo. Até que fui justo: certas obras de Fernando Henrique Cardoso foram descartadas junto com Lênin, Kautsky e Trótski; velhas tartarugas liberais acompanharam Eduardo Galeano e os estudos sobre o socialismo soviético.
Isso ia acontecer mais dia menos dia. Resisti o quanto pude ao e-mail; agora já tenho um e, antes que o galo cante três vezes, haverei de ter um celular.
Nunca fui muito radical no meu esquerdismo e, se tinha em casa Lênin falando do futuro do Estado, era mais porque o debate político assim o exigia que por adesão ao duro líder bolchevique.
Preservei o essencial, entretanto: "História e Consciência de Classe", de Lukács; os "Pressupostos do Socialismo", do adorável traidor da classe operária Eduard Bernstein; e quase todo o Marx. Deste, joguei fora o famoso "Teorias da Mais-Valia" -que, junto com os "Grundrisse", costumava ser a arma preferida dos marxólogos, quando escarafunchavam a entrelinha da entrelinha daquilo que não foi escrito no "Capital".
Fazendo esse registro, não quero dizer que "mudei", que já não penso o que pensava antes etc. O alívio de não conviver mais com tantos fantasmas tem a ver com outra coisa; é um alívio e não é.
Significa alterar as expectativas, não com relação ao futuro da sociedade e coisas do gênero, mas com relação ao meu futuro pessoal como leitor. Mantive os livros na esperança de que iria lê-los. A convicção não era política, era temporal.
Comprar livros, guardá-los, funciona como uma espécie de reserva cronológica, de longevidade imaginária. Se uma coleção de história do marxismo se estende por 20 volumes, possuí-la é estar garantido no tempo, é dominar um latifúndio de anos e de curiosidade improdutiva.
Falei que era um alívio abrir mão desses livros. Decerto, não preciso mais me enfronhar tanto em tanta coisa. Mas também dói abandonar a idéia onipotente de ler tudo aquilo um dia. "Mais Valem Poucos e Bons" -esse o título de um livro de Lênin que foi para o espaço. Digamos que a frase vale para anos e livros; melhor dizer só para livros, que para anos fica meio agourento.
Amadurecer, escolher, restringir, desistir, cansar, perder a paciência, desinteressar-se, nada disso, enfim, é muito amargo; talvez fosse, se eu ainda pertencesse às fileiras do pensamento revolucionário.
°°°°°°°°°°°°°°°°°°°°* * * O PT ganhou em várias capitais. Ah, sem problema. Está light. Mudou. Amadureceu. Etc. Gostaria de duvidar um pouco dessa versão.
Mudou em quê? Mudou quando? Eduardo Suplicy é Eduardo Suplicy desde que surgiu Eduardo Suplicy e nunca deixará de ser Eduardo Suplicy. José Genoino é light há dez anos, pelo menos. O PT vai para seu quarto mandato na Prefeitura de Porto Alegre, e não tenho notícia de que Tarso Genro tenha pedido para esquecerem o que ele escreveu.
Não faz muito tempo, aliás, que caiu o mundo em cima de Olívio Dutra porque ele foi contra a instalação da Ford em seu Estado. Agora pode? Luiza Erundina foi prefeita de São Paulo em tempos supostamente "imaturos" do PT. Sua gestão pode ter sido qualquer coisa, mas certamente não foi "radical".
Se alguém "amadureceu", acho que foram os chamados "formadores de opinião", que estão mais prontos a absorver o PT do que antes. Há várias causas para esse processo.
O primeiro é o surgimento do MST, que ocupa agora o lugar do PT como comedor de criancinhas. O segundo é a neutralização de Lula. A rejeição a Lula -rejeição de classe, rejeição visceral- revela-se bem maior do que a rejeição ao PT, e Lula esteve, na prática, ausente de todas as situações em que seria de prever uma intervenção sua como aspirante à Presidência da República.
O terceiro fator é que os níveis de corrupção e desgoverno, de banditismo e vandalização do poder público atingidos pela direita fizeram com que o PT se tornasse para muitos não só aceitável, mas desejável do ponto de vista da moralização política.
O PT mudou? Acho que não muito. Mudou o modo de encará-lo. O que me espanta é que, a despeito desse "amadurecimento" da opinião pública, a campanha em São Paulo tenha mostrado que Maluf pode crescer quando radicaliza. Sua propaganda funcionou ao agitar os temas do anticomunismo, do falso moralismo sexual, da repressão, do machismo, do preconceito.
É a extrema-direita que não desgruda do passado. Repete-se a todo momento que a esquerda não aprendeu com a queda do muro de Berlim. Mas é o eleitor de Maluf que não aprendeu com a queda do regime militar; nem quer aprender.



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