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MARCELO COELHO
Sobre mudanças, Lênin e o PT
Mudei de casa na semana
passada; não sou dos que
reclamam muito desse tipo de experiência. Os prazeres de situar-se
num novo lugar -a luz diferente,
o bairro a ser explorado, uma outra vista da janela- superam o
desconforto da situação.
Tenho dedicado boa parte do
tempo a desencaixotar livros e organizá-los na estante. No meio
desse processo, fui tomado de
uma espécie de fúria inquisitorial. Comecei a me desfazer de coleções inteiras. Para o lixo! Para o
sebo! Para o fogo! Coisas que nunca li nem vou ler.
Trata-se de uma alegre capitulação. Novos tempos: eu, que nunca me desfiz dos discos de vinil,
encaminhei a bom destino volumes e mais volumes de sociologia
e de marxismo. Até que fui justo:
certas obras de Fernando Henrique Cardoso foram descartadas
junto com Lênin, Kautsky e Trótski; velhas tartarugas liberais
acompanharam Eduardo Galeano e os estudos sobre o socialismo
soviético.
Isso ia acontecer mais dia menos dia. Resisti o quanto pude ao
e-mail; agora já tenho um e, antes
que o galo cante três vezes, haverei de ter um celular.
Nunca fui muito radical no
meu esquerdismo e, se tinha em
casa Lênin falando do futuro do
Estado, era mais porque o debate
político assim o exigia que por
adesão ao duro líder bolchevique.
Preservei o essencial, entretanto: "História e Consciência de
Classe", de Lukács; os "Pressupostos do Socialismo", do adorável
traidor da classe operária Eduard
Bernstein; e quase todo o Marx.
Deste, joguei fora o famoso "Teorias da Mais-Valia" -que, junto
com os "Grundrisse", costumava
ser a arma preferida dos marxólogos, quando escarafunchavam
a entrelinha da entrelinha daquilo que não foi escrito no "Capital".
Fazendo esse registro, não quero dizer que "mudei", que já não
penso o que pensava antes etc. O
alívio de não conviver mais com
tantos fantasmas tem a ver com
outra coisa; é um alívio e não é.
Significa alterar as expectativas, não com relação ao futuro da
sociedade e coisas do gênero, mas
com relação ao meu futuro pessoal como leitor. Mantive os livros
na esperança de que iria lê-los. A
convicção não era política, era
temporal.
Comprar livros, guardá-los,
funciona como uma espécie de reserva cronológica, de longevidade
imaginária. Se uma coleção de
história do marxismo se estende
por 20 volumes, possuí-la é estar
garantido no tempo, é dominar
um latifúndio de anos e de curiosidade improdutiva.
Falei que era um alívio abrir
mão desses livros. Decerto, não
preciso mais me enfronhar tanto
em tanta coisa. Mas também dói
abandonar a idéia onipotente de
ler tudo aquilo um dia. "Mais Valem Poucos e Bons" -esse o título
de um livro de Lênin que foi para
o espaço. Digamos que a frase vale para anos e livros; melhor dizer
só para livros, que para anos fica
meio agourento.
Amadurecer, escolher, restringir, desistir, cansar, perder a paciência, desinteressar-se, nada
disso, enfim, é muito amargo; talvez fosse, se eu ainda pertencesse
às fileiras do pensamento revolucionário.
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O PT ganhou em várias capitais.
Ah, sem problema. Está light. Mudou. Amadureceu. Etc. Gostaria
de duvidar um pouco dessa versão.
Mudou em quê? Mudou quando? Eduardo Suplicy é Eduardo
Suplicy desde que surgiu Eduardo
Suplicy e nunca deixará de ser
Eduardo Suplicy. José Genoino é
light há dez anos, pelo menos. O
PT vai para seu quarto mandato
na Prefeitura de Porto Alegre, e
não tenho notícia de que Tarso
Genro tenha pedido para esquecerem o que ele escreveu.
Não faz muito tempo, aliás, que
caiu o mundo em cima de Olívio
Dutra porque ele foi contra a instalação da Ford em seu Estado.
Agora pode? Luiza Erundina foi
prefeita de São Paulo em tempos
supostamente "imaturos" do PT.
Sua gestão pode ter sido qualquer
coisa, mas certamente não foi
"radical".
Se alguém "amadureceu", acho
que foram os chamados "formadores de opinião", que estão mais
prontos a absorver o PT do que
antes. Há várias causas para esse
processo.
O primeiro é o surgimento do
MST, que ocupa agora o lugar do
PT como comedor de criancinhas.
O segundo é a neutralização de
Lula. A rejeição a Lula -rejeição
de classe, rejeição visceral- revela-se bem maior do que a rejeição
ao PT, e Lula esteve, na prática,
ausente de todas as situações em
que seria de prever uma intervenção sua como aspirante à Presidência da República.
O terceiro fator é que os níveis
de corrupção e desgoverno, de
banditismo e vandalização do
poder público atingidos pela direita fizeram com que o PT se tornasse para muitos não só aceitável, mas desejável do ponto de vista da moralização política.
O PT mudou? Acho que não
muito. Mudou o modo de encará-lo. O que me espanta é que, a despeito desse "amadurecimento" da
opinião pública, a campanha em
São Paulo tenha mostrado que
Maluf pode crescer quando radicaliza. Sua propaganda funcionou ao agitar os temas do anticomunismo, do falso moralismo sexual, da repressão, do machismo,
do preconceito.
É a extrema-direita que não
desgruda do passado. Repete-se a
todo momento que a esquerda
não aprendeu com a queda do
muro de Berlim. Mas é o eleitor de
Maluf que não aprendeu com a
queda do regime militar; nem
quer aprender.
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